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O Pequeno Engraxate, crônica de Cícero Belmar

     Era um barzinho com cadeiras na calçada, pessoal animado, e o menin o chegou com a caixa de madeira no ombro, vai uma graxinha? Um quis, estendeu a perna e colocou o pé sobre a tampa. O garoto limpou o sapato com um pano umedecido, retirou a sujeira, aplicou a graxa nas partes de couro com muito cuidado para não tocar na borda do solado. Com uma flanela limpa, lustrou vigorosamente até ficar brilhoso. Bateu na caixa, era o comando para trocar de perna. Enquanto o garoto repetia todo o serviço, o pessoal da mesa repetia copos de chope e um dos rapazes que xavecava a moça de cabelos cheirosos, a quem queria demonstrar conteudo de justiça social, fez um discurso com ares de indignação, que país é esse com criança trabalhando? A moça quis demonstrar consciência sociológica e comentou ele é uma das pessoas que estão na base da pirâmide, são os esquecidos sociais. O menino não sabia  muito bem o que aquilo queria dizer, mas, como a moça bonita olhou tão piedosa, entendeu que as palavras queriam dizer algumacoisa favorável a ele. Aproveitou o clima para perguntar quem pode pagar um filé com fritas e um refrigerante para mim? Fez-se um silêncio inesperado, mas alguém puxou um assunto que não tinha nada a ver, falou do final de semana passado, e um dos rapazes tratou logo de se levantar, vou ao banhheiro. O menino ficou no vácuo, e foi assim que compreendeu que um esquecido social é alguém que não come filé com fritas. Melhor terminar o serviço e ir para outras mesas, assim fez. Os sapatos estavam perfeitos, no capricho. O engraxado perguntou quanto lhe devo? O menino ainda na esperança de ser bem remunerado, doutor pague o que o senhor acha que mereço. O menino recebeu a moeda, ficou pensando que receberia pelo menos outra igual à quela, mas o sujeito disse é só uma ajuda. Criança a gente ajuda. Só lhe restou dizer Deus lhe pague.

Em: O Livro da Personagens Esquecidas, Ed.Cepe 2022, pág. 77-78

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