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Em Um Certo São João, crônica de Ana Pottes

     Se avexe não que o tempo da chuva cair, despertando o cheiro da Terra molhada chegou. Amanhã pode ser o dia mais frio da sua vida, aqui nessa cidade que só tem duas estações. No entanto hoje, o calor movimentando a nossa cozinha, faz subir odores que despertam apetites.
     Ali, mãe rala o milho e chama a filha mais velha para raspar o côco. Nada me cabe a não ser tapinhas nos dedos ao tentar lamber o creme amarelo-ouro. Sim, pude descascar dois milhos e deles ficar com as bonecas. Lindas! Cabelinhos dourados. Encantada com suas formas guardo junto a uma palha grande, salva da panela que seguiu para o fogo, que lhe servirá de berço.
     A pequena cozinha da nossa casa ganha mais vida nesse tempo. A chuva, com seus pingos fortes, chega engrossando a biqueira, dando origem a um riacho. Logo minhas mãos constroem um barco e solto naquela imensidão caudalosa. Como não querem minha ajuda, brinco e crio a viagem dos sonhos para a boneca de milho. Seguirá para conhecer a Lhama, bichinho visto apenas no livro de histórias. Entretanto, a travessia termina na primeira curva, pois uma pedra imensa vira o barco e a boneca de milho quase se afoga. A mãe me chama para sair da chuva, senão a gripe me pega.
Apanho minha companheira de aventuras e enrolo na barra do vestido. Volto para a cozinha. Sento no batente e fico a espiar.
     - Depois me dá a panela pra eu lamber?
     A filha mais velha toma a frente:
     - Não senhora. Ajudei a fazer, então a raspa das panelas será minha.
     Fico triste, tento me impor, mas é em vão. Sou pequena para esse embate. Sigo para o quarto. Vou ler a história da lhama Gracinha. A imagem me encanta: elegante, com uma manta de listras coloridas sobre o lombo, orelhas bem em pé e pescoço comprido. Ainda hei de conhecer esse bichinho!
     De repente as vozes que vêm da cozinha aumentam e escuto a irmã falar quase chorando:
     - Mãe, não sinto gosto de nada!
     - O quê? Está ruim?
     - Não sei! Não sinto gosto! Perdi o paladar!
     De pé, na entrada da cozinha, observo sem compreender, enquanto ela choraminga:
     - E agora ? Tanta comida e eu sem sentir gosto nenhum!
     Nesse momento a mãe olha para mim, estende a colher de pau com um creme amarelo-ouro:
     - Prove aqui e diga se está gostosa.
     Arregalo os olhos e voo em direção àquela maravilha. Abro a boca, faço uma cara de quem entende do assunto, estalo a língua entre os dentes e dou veredito:
     - Hummmm...Está saborosa, mãe!
     E foi assim, com a irmã mais velha fora do páreo, que fiz grande festa, lambuzando até me fartar, com as raspas dos tachos das comidas de milho naquele São João.

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