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Mostrando postagens de setembro, 2024

O Menino e o Mar, (Prólogo) de Marcelo Gleiser

Um homem se aproxima do seu eu verdadeiro quando atinge a seriedade de duma criança que brinca. Heráclito      O menino firmou sua vara de pesca num tubo afincado na areia e olhou para o mar. As ondas rolavam preguiçosamente até a beira, enquanto o sol descia por trás dos prédios. As moças com seus biquinis minúsculos já haviam partido. Os jogadores de vôlei desciam as redes, pensando no chope que iriam beber com os amigos. A praia de Copacabana suspirava, cansada dos abusos de tanta gente. Restavam apenas o menono e alguns outros pescadores, homens aposentados sem muito o que fazer, barrigas estufadas de tanta cerveja, a pele curtida pelo sol de incontáveis tardes à beira d'água. Conheciam bem o moleque de 11 anos, que retornava ao mesmo local três vezes por semana com disciplina jesuita. A rotina não mudava: três anzóis no final da linha, cada um com uma isca de sardinha ou, quando o dinheiro dava, de camarão. O menino corria até a beira e arremessava os anzóis o mais longe que p

Vamos Pensar?

. A Maria é professora. E também é estúpida. Ela sabe que é estúpida porque o João, o seu marido, lho diz. Explica sempre tudo o que a Maria expressa. E o João sabe o que diz. O João não tem nenhuma formação específica e prefere o café ao trabalho. Mas o João não é estúpido porque é homem e homens não são estúpidos. A Raquel tem 50 anos. A Raquel é velha. Ela sabe que é velha porque o Pedro, o seu companheiro, a esclarece com frequência. Aponta-lhe os cabelos brancos, as rugas no rosto, a flacidez das mamas. O Pedro tem 55 anos. Tem cabelos grisalhos, duplo queixo e a barriga já lhe encobre a pouca masculinidade. Mas o Pedro não é velho porque é homem e homens não envelhecem. A Filipa é estudante. E é puta. Ela sabe que é puta porque o Miguel, o seu namorado, lho explica. Às vezes com manifestações físicas: já lhe rasgou o decote de um top, já lhe esfregou o batom pelo rosto, já a proibiu de usar certas saias. O Miguel implora sexo a tudo o que mexe, oferece-se em praça

Pescaria, poema de Guimarães Rosa

O peixe no anzol é kierkegaardiano. (O pescador não sabe, só está ufano.) O caniço é a tese, a linha é pesquisa: o pescador pesca em mangas de camisa. O rio passa, por isso é impassível: o que a água faz é querer seu nível. O pescador ao sol, o peixe no rio: dos dois, ele só guarda o sangue frio. O caniço, então, se sente infeliz: é o traço de união entre dois imbecis… – João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009. Imagem: Pescando, Almeida Júnior1894

Sentido da Primavera, crônica de Vinicius de Moraes

      Ao acordar, naquele dia preliminar da Primavera, senti imediatamente que alguma coisa tinha acontecido de muito fundamental na ordem do mundo. Eu, homem de despertar difícil, pulei da cama tão bem-disposto e leve que, por um momento, assustei-me com a sensação indizível que sentia. Ao pegar o copo habitual para a minha água matutina, notei que se achava cheio de uma substância volátil, penetrada de uma linda cor violeta. E não sei por que bebi do copo vazio, estranguladamente, o ar da Primavera, de gosto azul e fragrância fria, com um peso específico de sonho.      Durante alguns minutos nada me aconteceu. Tomei meu café, fumei um cigarro e dei uma olhada nas coisas. Mas de repente senti que em mim a matéria começava a se transformar. Palpitações violentas confrangeram-me o coração e eu mal conseguia respirar. Vi minha filhinha Susana distorcer-se à minha frente como ante um espelho côncavo e logo em seguida penetrou-me um cheiro tão monumental que pensei se me tivesse enlouqueci
O Filho de Mil Homens , livro de Valter Hugo Mãe, tem adaptação para cinema feita pela Netflix.       A solidão, para Crisóstomo, é um filho que não se tem. Aos quarenta anos, o pescador decide buscar o que lhe falta. Vai encontrar no jovem Camilo, órfão de uma anã, a chance de preencher a metade vazia, e em Isaura, enjeitada por não ser virgem, a possibilidade de ser mais do que completo. Com personagens tão excêntricos quanto humanos, que carregam suas tragédias com lirismo e ingenuidade, o festejado Valter Hugo Mãe povoa o vilarejo litorâneo onde a vida é levada com singela tristeza e a esperança do amor faz surgir uma alegria pequena, mas firme, porque construída com o possível. (amazon) O personagem principal, Crisóstomo,  é vivido por   Rodrigo Santoro.    O longa conta a história de   Crisóstomo , um pescador solitário que, aos 40 anos, sente o vazio da ausência de um filho e sonha em ser pai. Em sua busca por relacionamentos verdadeiros e profundos, ele encontra Camilo, um meni

Descobrindo antigos autores: José J. Veiga. Aquele Mundo de Vasabarros

      Conheça o mundo e a gente de Vasabarros, trazidos até nós por José J. Veiga neste relatório muito fiel sobre aquela comunidade incomparável mas não de todo impossível.  Conheça o S Simpatia D. Estêvão IV, o Mijão, quando mais não seja para evitar passar perto dele caso algum pesadelo nos transporte para lá uma noite.      Teoricamente o Simpatia é a autoridade máxima do lugar, mas a verdade pura e simples é que esse D. Estêvão não manda muito. Mas ele precisa de um derivativo para essa frustração, e os senescas de Vasabarros, seus ministros, permitem que ele faça alguma coisa: que mende gente humilde para os castigos do tico-tico, do diagrama, do triângulo, da barrica e até da barrica-com-araponga.      Vale a pena conhecer também o senesca bate-pau Gregóvio, o homem sem pescoço, que toma chá de cavaco, gosta de aplainar tabuinhas de jacarandá e é tão forte que imobiliza um cavalo segurando-o pelo rabo. É preciso ter cuidado com Gregóvio, pois ele é cruel, matreiro e tem um olho

O Jardim Selvagem, conto de Lygia Fagundes Telles

     – Daniela é assim como um jardim selvagem — disse o tio Ed olhando para o teto.      - Como um jardim selvagem…      Tia Pombinha concordou fazendo uma cara muito esperta. E foi correndo buscar o maldito licor de cacau feito em casa. Passei a mão na tampa da caixa de marrom-glacê que ele trouxera. Era a segunda ou terceira vez que a presenteava com uma caixa igual, eu já sabia que aquele nome era como o papel dourado embrulhando simples castanhas açucaradas. Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim selvagem?      Foi o que lhe perguntei. Ele me olhou com um ar de gigante da montanha falando com a formiguinha.      – Jardim selvagem é um jardim selvagem, menina.      – Ah, bom — eu disse.E aproveitei a entrada de tia Pombinha para fugir da sala. A tal caixa estava mesmo fechada, tão cedo não seria aberta. E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha visto uma visita guardá-lo na boca para depois cuspir. Na bacia, fingindo lavar as mãos.      Mais tarde, quando eu já enfiav

Vamos Pensar?

      "Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder a noção da distância que percorremos,  mas se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e o término, certamente lembraremos o quanto nos custou chegar ao ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou ontem.      Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus é tão complicado! Digamos então que nada se perderá.   Pelo menos dentro da gente..." Guimarães Rosa

Participação, poema de Alcy Araújo Cavalcante

Estou convosco. Participo dos vossos anseios coletivos. Vim unir meu grito de protesto ao suor dos que suaram nos campos e nas fábricas. Aqui estou para juntar minha boca às vossas bocas no clamor pelo pão sancionar com este rumor que vai crescendo a petição de liberdade. Estou convosco. Para unir meu sangue ao sangue dos que tombaram na luta contra a fome e a injustiça foram vilipendiados em sua glória de mártires de heróis. Vim de longe percorrendo desesperos. Das docas agitadas de Hamburgo das plantações de banana da Guatemala dos seringais quentes do Haiti. Vim do cais angustiado de Belém dos poços de petróleo do Kuwait das minas de salitre do Chile Passei fome nos arrozais da China nos canaviais de Cuba entre as vacas sagradas da Índia ouvindo música de jazz no Harlem. Afundei nas geladas estepes russas. morri ontem no Canal da Mancha e hoje no de Suez. Tombei nas margens do Reno e nas areias do Saara lutando pela vossa liberdade pelo vosso direito de dizer e de amar. Estou convos

Alma Penada, poema de Ladyce West

Alma penada Não cobri espelhos, não acendi velas Não recolhi fotos, não fiz orações, nem vigília ou velório. Não encaminhei sua alma Não chamei padre, rabino, pastor ou mulá. Não queimei incenso: pois você detestava; mas li para você uma poesia de adeus, de partida e voltei para casa, amortecida. Metade de mim, você levou. Impostora, a que ficou, vagou por aí. Davam-me por viva, imagine... Alma penada que sou. Em: Vozes do Luto: a dor de quem fica . Organização e Ediçao: Monique Machado, Rio de Janeiro, Do livro não me livro, 2024, pág. 132

Lua Crescente Em Amsterdã, conto de Lygia Fagundes Telles

     O jovem casal parou diante do jardim e ali ficou, sem palavra ou gesto, apenas olhando. A noite cálida, sem vento. Uma menina loura surgiu na alameda de areia branco-azulada e veio correndo. Ficou a uma certa distância dos forasteiros, observando-os com curiosidade enquanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental.      – Vai me dar um pedaço deste bolo? — pediu a jovem estendendo a mão. — Me dá um pedaço, hem, menininha?      – Ela não entende — ele disse. A jovem levou a mão até a boca.      – Comer, comer! Estou com fome — insistiu na mímica que se acelerou, exasperada. — Quero comer!      – Aqui é a Holanda, querida. Ninguém entende.      A menina foi se afastando de costas. E desatou a correr pelo mesmo caminho por onde viera. Ele adiantou-se para chamar a menina e notou então que a estreita alameda se bifurcava em dois longos braços curvos que deviam se dar as mãos lá no fim, abarcando o pequeno jardim redondo.      – Um abraço tão apertado — ele disse. — Acho que

Verão do Lenço Vermelho, romance de Elena Malíssova e Katerina Silvánova

     Dois jovens, Iura de 16 anos e Volódia de 19 anos vivem um romance em um acampamento em 1986. Vinte anos depois, Iura volta ao lugar para relembrar seu primeiro amor.        Isso é o que está em Verão do Lenço Vermelho. Nada de mais. Parece um livro perigoso? Acintoso?  Não?  Pois é.  Em julho deste ano o livro foi editado no Brasil e até está no Tik Tok.  No país de origem, a Rússia, ele foi banido sob alegação de que faz propaganda ocidental e LGBT. Ah, sim! O romance é entre dois rapazes o que é proibido pela lei russa.       O escritor e ex-membro da Duma Federal da Rússia, Zakhar Prilepim, chefou a sugerir que a editora fosse incendiada. Elena Malíssova, saiu do país em 2013 e desde então vive na Alemanha. Katerina Silvánova vive em seu país: Ucrânia. Fonte: Estadão

Velhinhos de Tacna, memórias de Maria Julieta Drummond de Andrade

     Fui assistir a La Señorita de Tacna e achei que, mais do que uma obra teatral, essa primeira peça de Mario Vargas Llosa é um conto intimista transposto para o palco. em vez de ler, o espectador vê a história de Elvira, de apelido Mamaê, sorte de Dona Rosita peruana, que por orgulho desfez o noivado na véspera do casamento e passou a vida cuidando dos filhos da prima com quem morava. Não há propriamente enredo e o que (não) acontece se desenvolve sobretudo dentro das personagens, incidências secretas de amor frustrado, humilhações, cóleras mudas, ímpetos contidos, sonhos inconfessos. Não obstante a montagem e direção, ambas excelentes, não obstante o cuidao, a precisão com que Norma Aleandro compõe o papel principal, falando e gesticulando quase simultaneamente  ( porque a ação vai e volta no tempo e no espaço) como a jovem saltitante e ingênua do começo do século e a anciã semiparalítica, irritada e nebulosa, em que se transformou - não obstante tudo isso, o espetáculo não me s

Bandolim, a nova livraria de rua de São Paulo

     Em São Paulo, uma livraria de rua que nem abriu ainda já está chamando a atenção e simpatia dos moradores por causa de seu banner bem humorado: " Ufa! Não é outro Oxxo".    É que na cidade  está havendo uma grande e rápida expansão de um mercado de nome Oxxo ( pronúncia:ó-qui-sô). Um internauta viu o aviso da livraria, e pôs a imagem nas redes com a explicação:    "Agora em SP, quando você abrir algo em uma esquina, você avisa que não é um Oxxo". Funcionou muito bem. A imagem da futura Livraria Bandolim viralizou. O Oxxo, entrou no clima e inteligentemente respondeu:  “Já passa no Oxxo e pega um cafezinho para acompanhar a leitura.” Gostei da ideia e quando for a São Paulo vou tomar o cafezinho no Oxxo e procurar a Livraria Badolim. Tenho simpatia por livrarias de rua e sebos.  Essa fica no bairro de Santa Cecília.