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Mostrando postagens de novembro, 2024

O Lugar da Resposta Certa, crônica de Marcílio Godoi

     "Pai, a mãe não resistiu", "Pai, ela acaba de partir em definitivo, "Papai, a mamãe morreu", na cabeça, cada um dos oito filhos ensaiava uma forma possível para se dizer o indizível ao velho: que nossa mãe, sua companheira, estava morta.      Enquanto preparavam o corpo dela para o enterro, os irmãos se entreolharam e decidiram ir todos pra casa dos pais, onde o velho esperava, aos noventa, novidades sobre o estado de saúde da mulher, internada uma semana atrás.      Em torno da antiga mesa de jantar, juntos, dariam ao velho o pior de todos os boletins. Ao ver os filhos chegando e se colocando de olhos vermelhos e em peso em torno da grande mesa, o pai foi se inquietando e passou a repetir a pergunta, cada vez em um tom acima: cadê Etelvina? cadê Etelvina? cade Etelvina? Descrente no que lhe dizíamos, recusava-se a acreditar e insistia, mas agora já em tom choroso, resignado, abaixo: cadê Etelvina?      Com o trauma do anúncio da morte daquela com quem con

Assim Termina o Livro Que eu Terminei: A Simples Beleza do Inesperado.

      Algo havia mudado em mim; uma cumplicidade com o peixe, com a vida, a humildade de ser apenas uma criatura dividindo o mesmo planeta com tantas outras. Homens, animais, todos lutamos pela sobrevivência. A natureza não sabe. Mas nós sabemos, ou deveríamos saber, nos declarndo Homo Sapiens literalmwnte "homem sábio". Onde encontramos essa sabedoria? No modo como dividimos o mundo com outras criaturas? Onde está a sabedoria quando matamos um leão ou um elefante a tiros, quando matamos um tubarão ou salmão por divertimento, para nos vangloriat, como se fossem troféus? Quais os valores morais que guiam o dedo que puxa o gatilho ou arranca o peixe da água? Existem muitas formas de concretizar os nossos desejos e impulsos, de buscar por grandes realizações e descobertas, que não envolvem a matança de vidas inocentes. Existem muitas formas de nos aproximar da Natureza sem mutilar suas criações.      Sempre soube disso, mas achava que soltar o peixe era suficiente , que o ato de

Vamos Pensar? Palavras.

 

Desenho, poema de Cecília Meireles

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, e comia mamão, e mirava a flor da goiaba. E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam. Isso era num lugar de sol e nuvens brancas, onde as rôlas, à tarde, soluçavam mui saudosas... O eco burlão, de pedra em pedra saltando, entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas. Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho, e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas, que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, pois a vida completa e bela e terna ali já estava. Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa! E o papagaio como ficava sonolento! O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmaticos fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo. Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. Maripôsas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes moravam nos jardins sussurrantes e eternos. E minha avó c

A Bruxa Não Vai Para a Fogueira Neste Livro, texto de Amanda Lovelace

dizer que nem todos os homens têm más intenções não me ajuda a me sentir segura. depois que eu deixar você nada terá mudado. eu ainda terei medo de sair de casa depois do pôr do sol, ainda sentirei conforto com as chaves na mão como uma arma, ainda vou questionar as intenções de cada homem que conhecer, ainda vou me perguntar quando me tornarei uma história feita para alertar as filhas de outras pessoas, & ainda vou chorar quando ligar a televisão e ver mais uma vez outro homem se safar de... bem, do que eles sempre parecem se safar. eu não sou aquela que tem que mudar a maneira de pensar ou de agir. eles é que têm. — expectativas vs. realidade. Em:  A bruxa Não Vai Para a Fogueira Neste Livro, Amanda Lovelace, Ed. Leya, 2018,Pags. 70-71

As Três Experiências, crônica de Clarice Lispector

     Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros,nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O “amar os outros” é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.      E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê, foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-