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Mostrando postagens de maio, 2024

O Pastor Gabriel, Miguel Torga.

     Nunca houve em toda a montanha pastor como Gabriel.      - Merecia outras olvelhas, homem! - disse-lhe um dia o Prior, desanimado da anarquia dos seus paroquiamos, quando viu o rebanho do rapaz atravessar a estrema dum centeio sem tirar uma dentada.      - Deus me livre! Já me vejo maluco com estas...      Mentira. O padre tinha razão.Era uma pena ver tanta autoridade, tanta vocação, tanto jeito natural, ao serviço de animais. Nem se pode fazer ideia! O carneiro mais teimoso, mais lorpa, mais churro, chegava às mãos do Gabriel e mudava de condição. Só não ficava a falar.      -Que fazes tu ao gado, criatura? Parece que o enfeitiças!      - Nada. Dou-lhe monte, como a outra gente.      Sorria. E lá continuava a educar os malatos com gestos e palavras que ninguém sabia fazer nem dizer. Nunca batia numa rês. O castigo era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma interjeiçào mal humorada. Mas bastava. Ao fim de algum tempo, cada cabeça como que porfiava em não desagra

14 de Maio, Lazzo Matumbi

No dia 14 de maio, eu saí por aí Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir Levando a senzala na alma, subi a favela Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia Um dia com fome, no outro sem o que comer Sem nome, sem identidade, sem fotografia O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver No dia 14 de maio, ninguém me deu bola Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver Nenhuma lição, não havia lugar na escola Pensaram que poderiam me fazer perder Mas minha alma resiste, o meu corpo é de luta Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu Será que deu pra entender a mensagem? Se ligue no Ilê Aiyê Se ligue no Ilê Aiyê Agora que você me vê Repare como é belo Êh, nosso povo lindo Repare que é o maior prazer Bom pra mim, bom pra você Estou de olho aberto Olha moço, fique esperto que eu não sou menino No dia 14 de maio, eu saí por aí Não

Por Favor Cuide da Mamãe, sobre o livro de Kyung-Sook Shin

Trata-se de ficção, aberta com uma citação do compositor Franz Liszt: “Ame, enquanto puder amar … Conta a história de uma mulher idosa, mãe de cinco filhos adultos, moradora do interior do Coréia do Sul que desaparece na estação do metro ao chegar a Seul. Park é casada há mais de 50 anos e o marido não percebe o sumiço, pois supunha que ela o seguia, alguns passos atrás, como sempre. O desaparecimento é um mistério. Os filhos, em especial a filha solteira, tomam iniciativas para localizar a mãe, desde a distribuição de panfletos e cartazes, colocados na imprensa, na internet, etc. e repassam a vida com ela “Até que ponto do passado vai a lembrança de alguém?”Lembram tudo o que não disseram a ela e concluem que de fato nunca conheceram “mamãe”. É uma delicada história de relações familiares, da posição da mulher na sociedade e nos deixa uma reflexão sobre o momento da vida em que passamos a entender os sacrifícios que nossas mães fizeram. O que acontece se é tarde demais para agradecer.

Lua Bonita, cordel de Zé do Norte e Zé Martins

Lua bonita Se tu não fosses casada Eu preparava uma escada Pra ir no céu te buscar Se tu colasse teu frio com meu calor Eu pedia ao nosso senhor Pra contigo me casar Lua bonita Me faz aborrecimento Ver São Jorge no jumento Pisando no teu quilarão Pra que casas-te com um homem tão sisudo Que come dorme faz tudo Dentro do seu coração Lua Bonita Meu São Jorge é teu senhor E é por isso que ele "véve" pisando teu esplendor Lua Bonita Se tu ouvisses meus conselhos Vai ouvir pois sou alheio Quem te fala é meu amor Deixa São Jorge No seu jubaio amuntado E vem cá para o meu lado Pra gente viver sem dor Deixa São Jorge No seu jubaio amuntado E vem cá para o meu lado Pra gente viver sem dor Ouça AQUI   Lua Bonita com Belchior e Dominguinhos

Ou Ou, Guimarães Rosa

A moça atrás da vidraça espia o moço passar. O moço nem viu a moça, ele é de outro lugar. O que a moça quer ouvir o moço sabe contar: ah, se ele a visse agora, bem que havia de parar. Atrás da vidraça, a moça deixa o peito suspirar. O moço passou depressa, ou a vida vai devagar? – João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009 Imagem: Pixabay (IA)

Paradeiro, Paulo César Pinheiro

Na noite acesa De um luar certeiro Meu paradeiro Foi a velha mesa De onde fui presa Quando aventureiro Do amor primeiro Que me deu tristeza. De uma beleza De não ter parceiro O candeeiro Branco da Princesa Causou surpresa A esse violeiro Que deu-se inteiro À sua boniteza. De Sua Alteza Sendo cavaleiro Pus no tinteiro A pena com firmeza E com presteza Fui seu mensageiro. Findo o roteiro E com delicadeza Deixo na mesa Um verso brasileiro Ao Cancioneiro E à Língua Portuguesa. - Paulo César Pinheiro, do livro "Sonetos sentimentais pra violão e orquestra". Editora 7Letras, 2014. Imagem: Rede Brasil

Astronomia, Nuno Júdice

Vou buscar uma das estrelas que caiu do céu, esta noite. Ficou presa a um ramo de árvore, mas só ela brilha, único fruto luminoso do verão passado. Ponho-a num frasco, para não se oxidar; e vejo-a apagar-se, contra o vidro, à medida que o dia se aproxima, e o mundo desperta da noite. Não se pode guardar uma estrela. O seu lugar é no meio de constelações e nuvens, onde o sonho a protege. Por isso, tirei a estrela do frasco e meti-a no poema, onde voltou a brilhar, no meio de palavras, de versos, de imagens . Nuno Júdice (1949-2024), in "O Breve Sentimento do Eterno" Ilustração de Maoi

Soneto de Maio, Vinicius de Moraes

Suavemente Maio se insinua Por entre os véus de Abril, o mês cruel E lava o ar de anil, alegra a rua Alumbra os astros e aproxima o céu. Até a lua, a casta e branca lua Esquecido o pudor, baixa o dossel E em seu leito de plumas fica nua A destilar seu luminoso mel. Raia a aurora tão tímida e tão frágil Que através do seu corpo transparente Dir-se-ia poder-se ver o rosto Carregado de inveja e de presságio Dos irmãos Junho e Julho, friamente Preparando as catástrofes de Agosto... Ouro Preto, maio de 1967 Imagem: Pixabay