Pular para o conteúdo principal

Velhinhos de Tacna, memórias de Maria Julieta Drummond de Andrade

     Fui assistir a La Señorita de Tacna e achei que, mais do que uma obra teatral, essa primeira peça de
Mario Vargas Llosa é um conto intimista transposto para o palco. em vez de ler, o espectador vê a história de Elvira, de apelido Mamaê, sorte de Dona Rosita peruana, que por orgulho desfez o noivado na véspera do casamento e passou a vida cuidando dos filhos da prima com quem morava. Não há propriamente enredo e o que (não) acontece se desenvolve sobretudo dentro das personagens, incidências secretas de amor frustrado, humilhações, cóleras mudas, ímpetos contidos, sonhos inconfessos. Não obstante a montagem e direção, ambas excelentes, não obstante o cuidao, a precisão com que Norma Aleandro compõe o papel principal, falando e gesticulando quase simultaneamente 
( porque a ação vai e volta no tempo e no espaço) como a jovem saltitante e ingênua do começo do século e a anciã semiparalítica, irritada e nebulosa, em que se transformou - não obstante tudo isso, o espetáculo não me satisfez. Preferiria desvendá-lo num livro.
     Mas aí do teatro comovida. Os três velhinhos que ocupam a mente de Belisário, o narrador ( figura em que se identificam traços do próprio Varga Llosa), e em torno dos quais a mínima ação se vai formando, esses três velhinhos me fizeram pensar profundamente nos outros velhinhos que carrego comigo. São três também. Quer dizer: velhinhos tenho muitos; só esses, porém, me fazem companhia - ágeis, apesar da idade, apesar da lentidão com que caminham, vivos, apesar de terem partido há tanto tempo. Vão comigo a toda parte, sem cansar-se sempre fiéis a si mesmos e a minha saudade. Às vezes silenciam, param. Não me assusto: sei que não os perderei nunca, pois vivem em mim, de mim, e me acompanharão até o final. ( E depois, quem sabe? talvez prosseguiremosmais juntos ainda, identificados na essência.)
     Meus três velhinhos.
     Hoje estou convivendo com dois. Deixo a terceira descansar (ela era delicada, fatigava-se à toa por causa dos joanetes) e suspiro, serena: - inútil pedir que não te preocupes, pois conheces de mim mais do que eu mesma, com esses poderes intensos que a diafaneidade te concede. Somos tao parecidas... e tão diferentes. Sou fiel e infiel ao mesmo tempo, constante e instável, mas nunca te abandonarei e tu estás segura disso. Daqui a pouco, amanhã conversaremos. Agora repousa. - ( E tenho de repente a sensação de que os papeis se inverteram e de que é ela, neste momento, a menina que preciso ninar.)
     Os outros dois eram marido e mulher. Já os conheci velhinhos, ou pelo menos assim me pareceu: sempre velhíssimos, de uma idade avançada e indefinida, que nunca se modificou: para mim foram assim desde o início - e continuam. Continuarão.
     Ela era pequenina, redonda; bochechas alegres, olhinhos espertos, óculos na hora de ler as orações, cabelos grisalhos, presos num coque sem vaidade. Também na hora de rezar, de noite, ela os soltava, penteando-os até a cintura. nunca a vi cortá-los. ( - Cabelos especiais - intuía eu sem entender -, nem bonitos nem feios, que tinham afaculdade de não crescer.)
     Ele era alto, corpulento, com uma barriga pontuda que fazia saltar os botões das calças muito largas. Uns suspensórios frouxos as mantinham mais ou menos no lugar. A pele era clara, embora tivesse adquirido no rosto uma tonalidade quase escura, avermelhada, produto do tempo e dos tormentos. Faltavam-lhe alguns dentes, falava grosso, arrastava os pés. Nunca foi calvo: usava um corte à escovinha, meio alemão. Aquele narz fino e alongado... Parecia um galo.
     Os dois dormiam em quartos separados, conversavam pouco, nunca saima juntos, às vezes discutiam. Até à igreja iam em horas diferentes. Mas de certa maneira difícil de expressar, viviam em harmonia, ou era o que eu queria imaginar: harmonia desarmônica, talvez, oculta - e real. Tão longe e tão juntos em meu duplo pensamento, de antes e de agora: para mim um não podia estar sem o outro, e assim os vou levando, perene.
     Os velhinhos que me protegiam. Eram frágeis e poderosos.
     Tiveram muitos filhos, quatorze ou quinze, e nãofoi fácil criar essa meninada em escadinha. De qualdos dois terá surgido a ideia de batizar alguns com nomes bizarros, que se escreviam numa língua estrangeira que ninguém sabia pronunciar? Que sentiriam deiante dessas moças baixinhas, desses rapazes morenos, louros, gordos, esbeltos, que iam chegando ano trás ano? Então eles se amaram muito? Ou tiveram filhos porque não era possível deixar de tê-los? Que prazer lhes trespassou o corpo com seus rápidos raios vibráteis? Como aceitaram a morte do primogênito, na mocidade , e de outros, pouco a pouco na madureza? Que sentiram diante da primeira neta, da primeira bisneta? Captaram a amplidao quase trágica do clima que os envolveu? Ou estavam tão absorvidos pelos embates quotidianos que não lhes sobrou desejo ou lazer para compadecer-se do destino que lhes tocou?
     Nunca me contaram nada a respeito. É bem verdade que nunca os interroguei, antes. E agora, de jeito nenhum: o tempo das perguntas já passou. Dentro de mim, meu casal de velhinhos anda de um lado para o outro, repete uma e outra vez os mesmos gestos de sempre. (ela de braços abertos, cravada na porta como uma cruz tentando impedir que o forasteiro entrasse naquele quarto; limpando o jardim e o galinheiro, amassando feijão com o pilão; rezando, rezando. Ele subindo a ladeira da igrej, rspando o fumo de rolo para enrolá-lo dentro da palhinha; almoçando na copa um prato feito, coberto de pimenta malagueta; tossindo sua tosse de velho.) Os mesmos gestos. Quando me falam, a voz sem palavra dos dois epete as frases daqueles anos, que sei de cor, de tanto ouvi-las. Já não lhes preocupa o porquê do que foi e se desfez exteriormente.
     Calo-me. Quero amá-los assim, sem curiosidade, preservando seu mistério, deixando-os diluídos e palpáveis, transparenes, enigmáticos, intatos em mim.
     Meus velhinos de Tacna.

Em: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade. Ed,Nova Fronteira 1982, págs 42-45

A Senhorita de Tacna, Mario Vargas Llosa



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Presepe, Manoel Bandeira

Chorava o menino. Para a mãe, coitada, Jesus pequenito, De qualquer maneira (Mães o sabem…), era Das entranhas dela O fruto bendito. José, seu marido, Ah esse aceitava, Carpinteiro simples, O que Deus mandava. Conhecia o filho A que vinha neste Mundo tão bonito, Tão mal habitado? Não que ele temesse O humano flagício: O fel e o vinagre, Escárnios, açoites, O lenho nos ombros, A lança na ilharga, A morte na cruz. Mais do que tudo isso O amedrontaria A dor de ser homem, O horror de ser homem, — Esse bicho estranho Que desarrazoa Muito presumido De sua razão; — Esse bicho estranho Que se agita em vão; Que tudo deseja, Sabendo que tudo É o mesmo que nada; — Esse bicho estranho Que tortura os que ama; Que até mata, estúpido, Ao seu semelhante No ilusivo intento De fazer o bem! Os anjos cantavam Que o menino viera Para redimir O homem — essa absurda Imagem de Deus! Mas o jumentinho, Tão manso e calado Naquele inefável, Divino momento, Esse bem sabia Que inútil seria Todo o sofrimento No Siné