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O Menino e o Mar, (Prólogo) de Marcelo Gleiser


Um homem se aproxima do seu eu verdadeiro

quando atinge a seriedade de duma criança que brinca.
Heráclito

     O menino firmou sua vara de pesca num tubo afincado na areia e olhou para o mar. As ondas rolavam preguiçosamente até a beira, enquanto o sol descia por trás dos prédios. As moças com seus biquinis minúsculos já haviam partido. Os jogadores de vôlei desciam as redes, pensando no chope que iriam beber com os amigos. A praia de Copacabana suspirava, cansada dos abusos de tanta gente. Restavam apenas o menono e alguns outros pescadores, homens aposentados sem muito o que fazer, barrigas estufadas de tanta cerveja, a pele curtida pelo sol de incontáveis tardes à beira d'água. Conheciam bem o moleque de 11 anos, que retornava ao mesmo local três vezes por semana com disciplina jesuita. A rotina não mudava: três anzóis no final da linha, cada um com uma isca de sardinha ou, quando o dinheiro dava, de camarão. O menino corria até a beira e arremessava os anzóis o mais longe que podia, para além da arrebentacão. Após firmar a linha, ele punha a vara no tubo e se sentava na areia, um olho na vara e outro no horizonte. Pouco ligava para os demais pescadores. Se lhe perguntassem, não saberia dizer por ue pescava. Sabia apenas que precisava estar ali, sozinho, na beira do mar, esperando.

     Costumava voltar para casa de mãos vazias, fedendo a sardinha e sal. No máximo, era uma cocoroca ou um bagre magro, os poucos peixes que sobravam junto à orla. Seus irmãos mais velhos caíam na gozação, pinçando o nariz com os dedos, fazendo cara de nojo, surpresos pela tenacidade do caçula. O pai se limitava a sacudir a cabeça, num silêncio acusatório.

     Naquele dia, porém, a história seria outra. Em meio às ondas, a menos de 20 metros da areia, o menino viu duas sombras prateadas cortando a superfície. Afoito, pegou a vara e recolheu a linha o mais rápido que seu molinete permitia. Após renovar as iscas, respirou fundo e lançou a linha onde havia visto o par.

     O menino esperou, ansioso. O tempo se arrastava em passo glacial. Nada. Desapontado, começou a recolher lentamente a linha. De repente, uma fisgada violent dobrou a vara ao meio. "É tubarão! "É tubarão!", o menino gritou, a voz entravada na garganta.

     Dois pescadores vizinhos vieram correndo. Fazia anos que um tubarão havia sido pego naquelas águas. O menino correu até a beira, segurando a vara com toda força, tntando recolher mais linha. O molinete mal girava. "Vai arrebentar, menino! A linha vai arrebentar", gritou um dos pescadores, mal acreditando no que via. "Solta a linha, deixa o peixe correr!" O menino soltou a tranca do molinete. O peixe disparou como um torpedo, tntando recuperar o controle de seu destino. O terrível predador havia virado presa de um predador ainda mais terrível, um menino de 11 anos munido de vara e anzol. Foram dez minutos de batalha, o peixe fugindo para longe e o menino trazendo-o de volta. Finalmente ganhou o menino, recolhendo-o exausto até seus pés. Não era tubarão. Mas o peixe era grande, magnífico, o maior que o menino havia pego em sua vida; maior do que o menino havia visto outros pegarem. Uma flecha pratada com uma nadadeira dorsal amarela, pesando uns 4 quilos, talvez um atum-branco ainda adolescente que, na sua impetuosidade, se arriscou mais do que deveria. Uma criatura mágica de tão bela.

     Os outros pescadores, boquibertos, cercaram o menino e seu peixe. Fingindo-se indiferente, o menino empacotou seu equipamento e tentou enfiar o peixe dentro da bolsa que levava a tiracolo. O rabo em forma de V ficou do lado de fora, atraindo a atenção das pessoas no caminho até sua casa. O menino entrou triunfante pela porta dos fundos e depositou o peixe na bancada da cozinha. "Ô, Lindaura, vem cá rápido!" A cozinheira, uma mulata de meia idade que ocupava metade da cozinha, veio correndo "Olha só o que vamos comer no jantar! E o vovô vem hoje, né?"A senhora piscou os olhos duas vezes, para ter certeza do que via. "Ocê pegou isso aqui na praia em frente?" O menino abriu um enorme sorriso. "Peguei. E peguei sozinho. Ninguém me ajudou. Quero ver qum vai gozar da minha cara agora."

Passaram trinta anos até eu reencontrar aquele menino.

A Simples Beleza do Inesperado, Marcelo Gleiser, Ed.Record, 2019, págs.11-13 (Prólogo).

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