Era 1973, eu tinha 3 anos. Caminhava, tentando acompanhar os passos longos dos meus pais, porque eles tinham que carregar o meu irmãozinho recém nascido e a bolsa com nossos pertences. Eles se revezavam nessa tarefa. Os meus passos eram curtos, havia pedrinhas no caminho e era preciso ter cuidado para não cair.
A estrada era longa, ladeada por imenso eucaliptal. A neblina brincava de atravessar a estrada, de criar figuras estranhas no ar. Ora apareciam unicórnios, ora surgiam peixinhos e outras figuras feitas de fumaça que iam nos seguindo naquele caminho de não sei onde.
De repente, ao longe, alguém ligou um rádio. Parei para escutar!
Era uma voz masculina, bonita! Os acordes da música me fizeram esquecer dos peixinhos e unicórnios feitos de neblina que pairavam no ar. O que poderia ser mais belo e mais triste do que aquela canção? Parei de caminhar para desvendar a dor daquelas palavras.
De repente, as mãos grandes do meu pai saíram de dentro da neblina, agarraram o meu pulso e me fizeram prosseguir. Quando somos crianças, nossos pais parecem ser gigantes, não é?
Continuei, nos meus passos tropeçantes, atrás deles. O bebê, no colo da minha mãe, olhava para todos os lados, talvez acompanhando os peixinhos e unicórnios que estavam sobre nós.
-Não precisa chorar, já estamos chegando!
Não era pela caminhada que eu chorei. Era por causa da voz daquele homem que vestia de tanta beleza aquelas palavras tão tristes. De quem seria aquela voz que as ondas do rádio espalhavam pelo eucaliptal?
De repente, em uma trégua da neblina, apareceu uma casa. Na varanda estava uma jovem que acenou para nós. Ali morava a família do Ordalino, um parente distante nosso. A música vinha de lá. Aquela foi uma manhã que ficou na tela da memória.
Anos depois, fiquei sabendo que aquela voz era de um cantor que tinha vindo de um lugar distante, chamado Goiás. Nunca deixei de escutá-lo, mesmo depois que ele deixou de aparecer na televisão e começou a ser chamado de “brega”. Para mim, ele é um Trovador da Eternidade, capaz de explicar para uma criança de 3 anos qual é a profundidade do abismo da saudade.
50 anos já se passaram, mas a música nunca parou de percorrer aquela estrada, de se embrenhar pelo eucaliptal, de se esconder por entre as matas que cercam as nascentes do rio que nasce próximo à Serra do Mar mas que corre para o interior do continente. Eu é que não pude ficar lá. Segui rumo a outros rios, muito distantes de São Paulo. Rios desconhecidos para os paulistas: rio Itapemirim, rio Doce, rio Cricaré e outros rios do norte.
Cadê você, mãe, que um tumor cerebral levou para um lugar distante chamado Morte?
Cadê você, pai, que ficou perdido no emaranhado de um divórcio litigioso?
Cadê o bebê? Que figuras de neblina o seguem agora?
Tão distante, no tempo e no espaço, está aquela manhã na casa do Ordalino, na cidade de Suzano, no Alto Tietê. Sem a minha mãe e sem o meu pai, continuo caminhando por estradas desconhecidas. Enquanto os meus cabelos vão mudando de cor e a minha pele vai brincando de dobradura, sigo em frente.
Da janela do meu quarto, avisto o cume do Mestre Álvaro, um monte que embeleza a Grande Vitória. Às vezes, quando estou triste, a neblina que sobe aos céus - para me alegrar-, se transforma em peixinhos e unicórnios e ficam circundando a montanha. Nesses momentos, eu ainda consigo ter o mesmo sorriso que tinha em 1973.
Do mesmo autor:
Dentro de cada um de nós temos um emaranhado de emoções, lembranças ,medos , temos que por pra fora de alguma maneira e vc coloca de maneira sutil as vezes com doçura em seus poemas. Se liberte do que te faz mal e viva com intensidade. Você é maravilhoso!!!
ResponderExcluirAgradecido!
ExcluirTexto maravilhoso! O cantor seria Odair José? Fiquei curiosa.
ResponderExcluirSim, Monalisa. A música se chama " Cadê você?", o intérprete é o Odair José. Agradecido!
ExcluirQue texto belo António. É possível sentir o sentimento nas suas palavras.
ResponderExcluirAgradecido, Jéssica!
ExcluirA leitura nos transporta para lugares desconhecidos. A impressão que dá é de estarmos vivendo na história lida.
ResponderExcluirParabéns, Antonio Neto por compartilhar conosco histórias tão ricas como essa.
Agradecido!
Excluir👏👏👏❤️🔥❤️🔥
ResponderExcluirUma história muito bem escrita, gostosa de se ler!!
ResponderExcluirAgradecido!
ExcluirQuando você me deu o texto, lembrei e cantei várias vezes "Cadê Você" de que gostava muito. Dia seguinte, num uber, ouvi novamente a música e catarolei novamente e como quando ela era sucesso, com o mesmo sentimento de saudade.
ResponderExcluirAgradecido pela oportunidade!
ExcluirQue texto sensível e autoral... Ele confirma a premissa de que a infância é o chão em que pisamos a vida toda. Obrigada por dividir essa memória conosco!
ResponderExcluirAgradecido, Débora!
ExcluirViajei no texto. Antônio sempre surpreendendo. Parabéns
ResponderExcluirAgradecido, Áurea Maria!
ExcluirQuantas emoções, lindo demais! 🌷❤️
ResponderExcluirAgradecido!
ExcluirNossa, Antonio, que viagem pude fazer através da leitura do seu texto, às memórias da minha infância também! Penso que a expressão "Na tela da memória" é bem sugestiva e convidativa, nos instigando a te pedir para escrever a parte 2, desse texto que acabou de nos presentear. Parabéns!
ResponderExcluirAgradecido , Ângela!
ExcluirAgradecido Ângela!
ExcluirParabéns Antônio! Seu texto é maravilhoso. Fui transportada para dentro da história. Mexeu com minhas emoções. Adorei!
ResponderExcluirAgradecido!
ExcluirLer contos do Escritor Antonio Neto é como se fosse uma conversa gostosa, ele nos faz viajar em suas memórias, conseguimos até sentir o cheiro da terra em que ele pisou quando criança, e de mãos dadas com ele, seguimos pela mesma estrada....
ResponderExcluirParabéns!!!!
Agradecido, Kássio! Se não fosse por você, este texto não teria sido escrito.
ExcluirEu só te pedi para você escrever o texto, o talento é todo seu!!! Sua escrita é passagem garantida para nosso enriquecimento cultural!
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