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Tempo Morto, conto de Gilvan Lemos

     Um poço fundo, lama revolvida. Borbulhas de calda grossa, abulição de doce no ponto. Passos
solitários na calçada, os pés de não se sabe quem recompondo sombras. Lamentos de criança em noite alta. Um velho fitando a torre da igreja. Não sei por que me vêm essas imagens. A secretária tinha dito: Mencionou apenas o nome, disse que o senhor sabia de quem se tratava. Pedi-lhe tempo: aviso quando puder recebê-la. Preparava-me? tomava fôlego?
     Denise. Nossas casas confrontes na rua estreita, a dela assombrada. Da minha, através da vidraça, eu a via chegando à varanda, quando um ruído qualquer despertava-lhe a curiosidade, ou no vagar dum cigarro nostálgico. Por que nostálgico? Pela conotação do termo desusado ( por isso mesmo ingenuamente romântico), pela necessidade que eu lhe emprestava de superar-se do tédio, satisfazer-se do amor que eu lhe daria. Pensamos sempre que quem amamos é que precisa de nós.
     Momentaneamente os carros passando em fila, o rancor impaciente dos motores, a par com buzinadas. Mamãe batendo ovos na cozinha. Omelete. Uma barata morta, formigas a destroça-la. Súbito os carros desocupavam a rua, a campainha do sorveteiro de novo podia ser ouvida. O remedão debaixo do oitizeiro martelando sola/sopros/solidões. E Denise ausente. E eu na vidraça.
     Em 31 de dezembro, vépera de Ano Novo, havia festa no casarão: aniversário do marido. Dr. Arão, baixote, barrigudo, não fosse tão desagradável à vista poderia ser meu pai. Meio dia em ponto buzinava para que lhe viessem abrir o portão. Deixava o carro na garagem, surgia em direção à porta dos fundos, bamboleante, as coxas roçando uma na outra, rangindo. Mas tinha dinheiro e posição. E um belo par de chifres, completava meu pai.
     Proporcionados pelo galã do bairro, Luiz, assim mesmo, sem sobrenome, que em camiseta exibia os glabros músculos de halterofilista - o primeiro a comparecer às festas do dia 31 de dezembro. Oh! mas sem ele a reunião não tinha graça, conforme afirmava o próprio dr. Arão, este, de Alencar Gouveia, além de apelidos menos edificantes.
     Denise, tão nostalgicamente a fumar no terraço, contentar-se-ia com Luiz? Claro que não. Um dia eu irir a uma de suas festas, um dia eu a recompensaria de pertencer a dr. Arão, de ter pertencido a um tal de Luiz, pensava, enquanro na cozinha a batida dos ovos silenciava e um cheiro de assado penetrava-me nas narinas coladas na vidraça.
     Mais: minha mãe que em seguida deturpava uma canção do seu tempo de moça; a barata que caminhava morta; seus ancestrais - severos, enquadrados na parede - que me recriminavam. E o diploma encerrado no canudo de alumínio, a voz da consciência a cobrar-me sua utilidade, decerto influenciada pela incoformação do meu pai, que o balançava, chacoalhava-o, e dizia ressentido:Quanto tempo e dinheiro perdidos aqui dentro.
     Denise. Dei ordem para que entrasse. Denise. Não lhe senti nenhum perfume, não mais usava. O rosto cheio, vincos profundos em torno dos lábios, risquinhos negligenciados em volta dos olhos, na testa. A cabeleira ostensivamente grisalha. E o corpo volumoso, seios inestéticos. Sorria, indiferente ao meu olhar analítico. É bom ter um amigo influente, disse. Vinha por um auxílio, não para ela, para os filhos.
     -Você tem filhos?
     - Setenta e três.
     Depois que o marido havia morrido, andara por aí. Viagens, temporada em casa de parentes. Nada a contentava, nada satisfazia a seus anseios íntimos. Tivera aquela idéia: amparar as crianças desvalidas. No orfanato empregara todo o dinheiro deixado pelo marido. Até ali valera-se dos próprios recursos, mas com a inflação...
     Consegui enfim participar de uma de suas festas. Doutor de araque, as considerações da estreia, depois o esquecimento. Vaguei sozinho pelas salas iluminadas, as de recepção, de reunião,de estar, até uma de dança. Denise, em todas as partes em que eu não estava (e eu em todos os lugares em que ela se encontrava), num vestido colante, liso, ataviado apenas do começo dos seios que o decote largo entremostrava, cabelos presos, olhos pintados. Eu lhe seguia o rastro de perfume, eu a pressentia à distância. Senhores de copo à mã; senhoras e senhoritas fazendo-se de atraentes. Na sala de dança principalmente jovens, a desfrutar do rock a infernalidade dissonante. E o dr. Arão? Denise parava num casal, num grupo, servindo a uns, atendendo a outros, a taça de champanha, a sua, pela metade.
E Luiz?
     Tinha havido um inesperado silêncio, como se aos circunstantes faltasse o assunto convencionado. Da sala de dança chegava a algazarra, despropositada, mesmo para um local onde só havia rapazolas irresponsáveis. Todos nos dirigimos para lá. Denise à frente. A rapaziada formava um círculo, batia palmas ao compasso do rock. No meio, mais divertido que os demais, Luiz incitava o dono da casa que, descabelado, suado, desabotoado, requebrava o corpanzil desairoso, num ridículo de fazer pena. A cena era de fato deprimente. Ao deparar-se com aquilo Denise, às braçadas, desfez a roda, em seguida desligou o som. Luiz ainda caminhou em sua direção, não sei com que propósito. Ela o afastou energicamente, segurou o dr. Arão, contendo-lhe os requebros, arrastou-o para os fundos. Trancados no quarto não mais apareceram. E a festa acabou.
     - Nessa mesma noite rompi com Luiz
     -Eu sei
     -Era um salafrário
     -Sem dúvida.
     Passara a demorar-se mais tempo na varanda, às vezes nem fumava, tampouco demonstrava curiosidade por algum barulho inusitado da rua: flutuava no tempo da espera. Deixei de lado a vidraça, abri a janela. Ficamos nos conhecendo.
     Um dia em que demoravam a facilitar a passagem do carro do doutor, cruzei a rua, abri-lhe o portão. Sinceramente agradecido, convidou-me a conhecer sua criacão de canários do império. Afável, loquaz, com suas mãos gordas de dedos curtos não tinha aptidão para dar bom trato aos passarinhos. Forneci-lhe conselhos lógicos, consertei gaiolas, mudei a água das bacias. Dr. Arão mostrava-se cada vez mais agradecido. De algum recanto, presente sem se fazer notada, Denise acompanhava minha dedicação e a aprovava com olhar materno.
     À certa hora da noite, as empregadas recolhidas aos seus aposentos, a luz da varanda piscava duas vezes. Denise trancava a porta interna da copa, abria-me a de fora, lateral. Recebia-me apenas de camisola, que logo despia, oferecendo-me o corpo azulado, iridescente sob o impacto de variados focos refletidos na parede, causados pelas mudanças de cena do televisor ligado na sala de estar para o doutor Arão, que se divertia à beça com os programas humorísticos, fazia comentários em voz alta, chamava a mulher, repetia-lhe os desfechos mais engraçados.
     Denise, sem me largar, alternando ofegos, dizia-lhe que esperasse um pouco. Que estava fazendo? Pregando uns botõezinhos na camisola. E mordia minha orelha.
     Havia ocasiões em que o doutor calava, suspeitosamente ausentava-se em silêncios, aí ouvíamos pisadas. Eu estremecia. Não haveria tempo de prevenir-me, fugir. Denise mais se agarrava em mim, prendia-me com força estranha. Parecia mesmo que o seu desejo era ser surpreendida. Os passos do doutor tomavam rumos tranquilizadores, cessavam. Ele pigarreava. Lassa, morta em meus braços, Denise aguardava ouvir-lhe outros sinais de presença, a fim de recomeçar com mais furor. Era a nós dois que ela ao mesmo tempo amava.
     Com o agravamento da doença do dr. Arão, Denise não consentia que arredasse o pé de sua casa. Já nos encontrávamos a qualquer hora do dia ou da noite, em vários cômodos, por onde as empregadas transitavam a indiscrição complacente. No corredor. frente à porta do enfermo, que de propósito Denise deixava aberta, mais se desvanecia, entregando-se, misturando seus gemidos lúbricos com os de dor ou desengano ou de abandono do paciente. Assistiu à morte pegada em minha mão.
     Quanto tempo passei depois de conseguir falar-lhe? Dias? Meses? Anos? A varanda não servia à sua curiosidade nem lhe ofereci campo para os cigarros nostálgicos. Tentei todos os meios. Inutilmente. Seu telefone não atendia, a porta de sua casa não mais se abria para mim. Abordei as serviçais, disseram-me que ela não saía de  casa nem do quarto, passava o dia deitada. Na cama onde morrera o doutor.
     Eu queria dizer-lhe ...Tudo! E não conseguia. Reassumi o posto de observação na vidraça. Besouros tontos atrapalhavam-me a visão. Meus ancestrais renasciam na penumbra. Meu pai, de tanto chocalhar o diploma no canudo, perdia o calculado ritmo.Minha mãe queria cantar, não cantava, e eu a ouvia cantando. Ruídos de avião no céu aberto. Cataratas de flores caindo dos pés de acácia. E um miasma de morte, de coisas velhas, varando-me os sentidos. Quando enfim consegui e lhe falei, me disse: Esqueça. Tudo. Eu já esqueci. 
     Denise. Mãos mal tratadas, unhas sem brilho. De lavae sem recompensa os utensilhos dos orfãozinhos? Sorria ainda. Recordava?
     Sua voz sem mágoa:
     - Você casou?
     -Sim, já tenho um filho rapaz
     -Parecido com você?
     - O povo de fora acha
     -Poderia ter sido meu.
     - Sim, poderia. E você?
     -Não, não casei nem tive nenhum romance. Com ninguém. Jamais.
     - Por quê? Ainda era jovem. Ficou sozinha?
     - Mas não lhe disse que tenho filhos? Sim, setenta e três.Vivo para eles.
     Despediu-se naturalmente, sem me dar a mão. Vi no gesto, ou na ausência do gesto, uma intenção calculada. Saiu deixando seu perfume, sim, havia um, diferente do que habitualmente usava. Perfume dela mesma, natural, novo para mim. Um inquietante odor de tempo morto.

Em: A Inocente Farsa da Vingança, Gilvan Lemos, Ed. Estação Liberdade,1991, págs.202-206


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     A moeda corrente era o cruzeiro. A passagem de ônibus custava sessenta centavos. O ano era 1974.       Eu trabalhava no centro da cidade, em um banco que ficava na Rua Boa Vista. Morava longe, quase ao final da Avenida Interlagos, e usava diariamente o transporte coletivo. Meu trabalho, no departamento de estatística, resumia-se a somar os números datilografados em planilhas e mais planilhas fornecidas pelas agências do banco. Somas que deveriam ser checadas, e que eram efetuadas nas antigas calculadoras elétricas com suas infernais bobinas, conferidas e grampeadas nas respectivas planilhas. Não fosse o café para espantar o sono durante as diárias e rotineiras oito horas de trabalho, nenhuma soma teria sido confirmada.