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Mationã, crônica de Rachel de Queiroz



     Ele chegou num avião da FAB, mandado pelos rapazes da Proteção aos Índios, numa derradeira tentativa de salvação. É um dos pouquíssimos remanescentes de uma tribo que se acaba - fala-se em meia dúzia de indivíduos - os turumais.
     Mationã, o índio, tem uns oito anos; pareceia um bichinhonmoribundo quando o vi pela primeira vez, deitado num leito branco, de uma magreza espantosa, o olhar vidrado, comatoso, um gemido monocórdio lhe saindo da boca chagada de febre, a mãozinh seca feito uma garra de pássaro abrindo-se e fechando no ritmo do gemido. Segurei-lhe a mão e ele cerrou com força os meus dedos. Gemeu mais alto. Sei que saí dali chorando.
     No dia seguinte passávamos pelo hospital, vimos uma luz no necrotério. O doutor ao meu lado calculou que seria o índio. Mas não era. Semana atrás semana, parecia ainda que seria ele o ocupante da sinistra capelinha; nunca se viu um ataque tão violento de febre maligna num corpinho tão débil. Mas terá sido o interesse apaixonado dos médicos, o carinho das enfermeiras, o hospital inteiro rodeava a cama do indiozinho como a de um filho predileto? Parecia uma aposta com a morte. E a morte acabou perdendo. foi-se a febre foi-se a caquexia - só restaram as ascaras enormes, que quase o levam. vedade que ele ajudava, meu Deus, como ajudava! Ainda imóvel na cama, tomando soro ( era a terceira visita que lhe fiz), de repente abriu os olhos, pôs-se a chorar. A princípio só berreiro, mas logo se entendeu o que ele queria:
     - Rapadura! Rapadura!
     Rapadura era impossível, claro. O doutor sugeriu banana. Mationã imediatamente concordou:
     - Banana, banana!
     Pensei que foosse delírio de febre, mas qual! Mal chegou a banana, ele, assim mesmo de borco, por causa das ascaras, arrebatou a fruta como um macaquinho e em três dentadas a devorou.
     E eu, que ao vê-lo alí, cobrando consciência na cama de hospital, cercado de estranhos, atado para não arrancar a agulha das transfusões, imaginara o pavor que ele sentiria, o terror ante aqueles homens e mulheres de branco que só se aproximavam para o furar, apalpar, judiar - que medo imenso deveria apertar o seu coraçãozinho selvagem!
     Sim, talvez ele atravessasse essa fase de medo. Mas se a teve, foi curta. Porque hoje não há neste mundo sujeito mais feliz, mais amado, mais eufórico, mais rico, mais contador de lorotas, mais saliente e bem-humorado do que Mationã, o indiozinho turumai. Pelo hospital inteiro ostntando um cocar de penas de galo que lhe fez uma enfermeira, passeia de pijama e sapatos china-pau. Adora dar bom-dia e apertar as mãos. Come como uma impingem. Armazena uma verdadeira despensa no criado-mudo. Tem um arco que lhe fez um doutor e a flecha prudentemente é uma longa pena: se fosse coisa mais dura daria em desastre, pois a pontaria de Mationã é mortal. A cama vizinha à sua, na enfermaria, parece um bazar de brinquedos. Todo mundo no hospital lhe traz presentes. E ele, bom príncipe, distribui uniformemente os "obirigado"e os sorrisos. Aprendeu a cantar e adora rádio. Engordou que ninguém o reconhece. Exogiu que lhe cortem o cabelo à moda da sua terra, em cuia de frade. Estóico até ali. As ascaras ainda cobertas de curativos, devem doer muito; tanto que ele não se pode abaixar para apanhar objetos. Mas quando a gente indaga: "Dói, Mationã?" Ele sorri: "Dói". E muda de assunto. Não tolera um gesto de hostilidade. Um médico, brincando, deu-lhe uma palmada. Ele fechou a cara, correu para a cama. Foi uma luta fazê-lo voltar às boas. Acabou perdoando, a troco de um presente. Perdoou, mas não entendeu. Inteligente assim também nunca vi. O diretor lhe mostrou uma revista com reportagem sobre índios lá das suas bandas. E ele ia identificando as fotografias, sem um erro: "Calapalo! Bororo!". Nisso descobriu o retrato de um dos irmãos Vilas-Boas. Agarrou a revista, rindo, aos bijos: "Viraboa! Viraboa!"
     E conta coisas. Outro dia, os médicos jantavam quando Mationã chegou à sala. Tomou do paliteiro e, na toalha branca, foi desenhando com palitos a taba dos bororos, seus inimigos tradicionais. Um grande círculo. Um grande círculo fechado com duas saídas. Dentro, uma porção de palitos apinhados - os bororos. Em redor, escondidos no mato, os turumais. Junto a uma entrada, um palito grande, sozinho - "pai". (Mationã tem um orgulho tremedo pelo pai, que aparentemente é o chefe. Diz que ele é grande, forte,valente, mata bororo com uma pancada só.) Na outra entrada, outro palito: "Pai de pai", o avô. Mationã descreve numa mímica perfeita: os bororos, descuidados, saem do cercado - pá, borduna neles, bem em cima do narz, caem mortos. Os outros fecham-se na taba. Mationã põe as mãos nos olhos, grita ui-ui! - são as mulheres chorando. De repente dois bororos saem do cercado. "Fazer xixi", explica Mationã. Os turumais esperam atrás da cerca. Borduna neles, ou flecha. - Terra. final chega a hora do assalto. Gritaria, flechada,porretadas, o chão fica cheio de bororos. Turumais entram na taba e Mationã explica como é que eles com uma das mãos tapam a boca das mulheres, com a outra as agarram pelo pulso e as atiram à costas.
     - A gente indaga: "Mas para que matar os bororos , Mationã?
     Ele ri, admirado da pergunta:
     - Tomar mulher, ôi!

                                                                           ***

     Vem me fazer uma visita. Corre pelo quintal, adora a cachorrinha, dança com ela; mas quando lhe mostro o gatão peludo ele recua, franze o nariz, procura a palavra em português: "Onça!"
     Insisto em que e um bichinho manso, onça nada, gato! Trago o gato até ele. Mationã estende rapidamente a mão, segura o punho do gato, espreme a pata, as unhas saltam: "Viu? Onça!"
     Mostro-lhe uma moça da casa, cabocla do Ceará: "Olha Mationã, esta moça é bororo!" Ele se interessa profundamente. Vem examinar a orelha da moça, furada, com um brinquinho de ouro. Aí abana a cabeça, rindo:
     - Mentira! Bororo nada! Bororo da orelha muito pequeno!
     Assim é Mationã, príncipe turumai. E, como diz a enfermeira dele, no dia em que esse índio for embora do hospital, muita gente vai chorar.

Em: Cenas Brasileira, Rachel de Queiroz, Ed. Ática,2007 pags. 11-15.  A crônica é de 1955  

                          


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