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Minha Leitura Atual: O Velho Que Lia Romances de Amor, Luís Sepúlveda

     O céu era uma inflada pança de burro que pendia 
ameaçadora a poucos palmos das cabeças. O vento
morno e pegajoso varria algumas folhas soltas e sacudia com violência as bananairas raquíticas que enfeitavam a fachada da delegacia.
     Os poucos habitantes de El Idilio mais um bando de aventureiros vindos das redondezas se reuniam no cais, esperando a vez de sentar na poltrona portátil do doutor Rubicundo Loachamín, o dentista, que aliviava as dores de seus pacientes mediante um curioso tipo de anestesia oral.
     - Dói? - perguntava
     Os pacientes, agarrando-se no encosto da poltrona, respondiam abrindo desmesuradamente os olhos e suando em bicas.
     Alguns queriam retirar de suas bocas as mãos insolentes do dentista e responder-lhe com o merecido palavrão, mas suas intenções se chocavam com os braços fortes e com a voz autoritária do odontólogo.
     - Quieto, porra! Tire as mãos daí. Já sei que dói. E de quem é a culpa? Vamos cer. É minha? Do governo. Meta bem isso na cabeça. É do governo a culpa de seus dentes serem podres. O governo é culpado por sua dor.
     Os aflitos então concordavam fechando os olhos ou com leves movimentos de cabeça.
     O doutor Loachamín odiava o Governo. Todo e qualquer governo. Filho ilegítimo de um imigrante ibérico, herdou dele uma tremenda raiva a tudo que soasse a autoridade, mas os notivos daquele ódio se perderam em alguma farra da juventude, de tal maneira que suas fanfarrices de anarquista se transformaram numa espécie de verruga moral que o tornava simpático.
     Vociferava contra os sucessivos governos do mesmo modo como o fazia contra fringos vindos às vezes das instalações petroleiras do Coca, estranhos descarados que fotografavam sem pedir licença as bocas abertas de seus pacientes.
     Bem perto, a pequena tripulação do Sucre carregava cachos de banana verde e sacos de café em grão.
     De um lado do cais se amontoavam as caixas de cerveja, de aguardente Frontera, de sal, e os botijões de gás que cedo tinham desembarcado.
     O Sucre zarparia quando o dentista terminasse de consertar mandíbular, navegaria remontando as águas do rio Nangaritza para desembocar mais tarde no Zamora e, depois de quatro dias de lenta navegação, atracaria no porto fluvial de El Dorado.
     O barco, antiga caixa flutuante movida pela decisão de seu capitão-mecânico, pelo esforço de dois homens robustos que compunham a tripulação e pela vontade tísica de um velho motor diesel, não voltaria até que passasse a estação das chuvas, que se anunciava no céu carregado.
     O doutor Rubicundo Loachamín visitava El Idilio duas vezes por ano, tal como fazia o funcionário dos Correios, que raramente levou correspondência para algum habitante. De seu malote gasto só saíam papéis oficiais destinados ao delegado ou os retratos, sérios e desbotados pel umidade, deos sucessivos governantes.
     As pessoas aguardavam a chegada do barco sem outra esperança que a de ver renovadas suas provisões de sal, gás, cerveja e aguardente, mas recebiam o dentista com alívio, sobretudo os sobreviventes da malária cansados de cispir restos de dentes e ansiosos por ter a boca limpa de lascas, para experimentar uma das próteses alinhadas sobre uma toalha roxa de indiscutível ar cardinálico.
     Desancando o Governo, o dentista limpava suas gengivas dos últimos restos de dentes e em seguida mandava que feizessem um bochecho com um gole de pinga.
     - Bom, vamos ver. Que tal esta
     Me aperta. Não consigo fechar a boca.
     Merda! Que sujeitos mais delicados. Vamos ver, experimente outra.
     - Me parece solta. Vai cair se eu espirrar.
     -E para que você vai resfriar, moleque? Abra a boca.
     E eles obedeciam.
     Depois de experimentar diferntes dentaduras, achavam a mais cômod e discutiam o preço enquanto o dentista desinfetava as restantes numa vasilha com cloro fervido.
     A poltrona portátil do doutor Rubicndo Loachamín era toda uma instituição para os habitantes das margens dos rios Zamora, Yacuambi e Nangaritza.
     Na realidade, tratava-se de uma antiga poltrona de barbeiro com o pedestal e as bordas esmaltadas de branco. A poltrona portátil precisava da fortaleza do capitão e dos tripulantes do Sucre para ser levantada e se fixava fincando sobre um estrado de um metro quadrado que o dentista chamava "o consultório".
     - No consultório mando eu, porra. Aqui se faz o que eu digo. Quando acabar podem me chamar de tira-dentes, remexe-focinhos, apalpa-línguas ou como bem entenderem, e pode ser até que eu aceite um trago.
     Os que esperavam a vez mostravam cara de extremo sofrimento, e os que passavam pelas pinças extratoras tampouco tinham semblante melhor.
     Os únicos personagens sorridentes nas redondezas do consultório eram os jivaros que, acocorados, olhavam.
     Os jivaros. Indígenas rechaçados por seu próprio povo, o shuar, por considerá-los envilecidos e degenerados com os costumes dos "apaches", dos brancos.
     Os jivaros, vestidos em farrapos de branco, aceitavam sem protestos a alcunha imposta pelos conquistadores espanhóis.
     Havia uma enorme diferença entre um shuar altivo e orgulhoso, conhecedor das secretas regiões amazônicas, e u jivaro, como os que se reunião no cais de ElIdilio esperando por um resto de álcool.
     Os jivaros sorriam mostrando sues dentes pontiagudos, afiados como pedras de rio.
     - E vocês? Que diabos estão olhando? Algum dia Vão cair em minhas mãos, seus micos - ameaçava o dentista.
     Ao sentir-se mencionados, os jivaros respondiam contentes.
     - Jivaros bons dentes tendo. Jivaro muita carne de macaco comendo.
     Às vezes, um paciente soltava um grito que espantava os pássaros, e afastava as pinças com um safanão, levando a mão livre até o cabo do machete.
     -Comporte-se como homem, valentão. Já sei que dói e lhe disse de quem é a culpa. Não me venha com bravatas. Sente-se tranquilo e mostre que tem culhões.
     - É que o senhor está me arrancando a alma, doutor. Me deixe tomar um trago primeiro.
     O dentista suspirou de pois de atender ao último sofredor. Envolveu as próteses que não encontraram interessados na toalha cardinalícia e, enquanto desinfetava os instrumentos, viu passar a canoa de um shuar.
     O indígena remava parelho, de pé, na popa da estreita embarcação. Ao chegar junto ao Sucre, deu um par de remadas que o colaram ao barco.
     Na amurada surgiu a figura entediada do capitão. O shuar lhe explicava algo gesticulando com todo o corpo e cuspindo sem parar.
     O dentista terminou de secar os instrumentos e acomodou-os num estojo de couro. Em seguida apanhou a vasilha com os dentes arrancados e atirou-os na água.
     O capitão e o shuar passaram a seu lado rumo à delegacia.
     - Temos que esperar, doutor. Estão trazendo gringo morto.
     Não gostou da novidade. O Sucre era um trambolho desconfortável, sobretudo nas viagens de volta, recarregado de banana verde e café tardio, semipodre, nos sacos.
     Se desse de chover antes do tempo, coisa que aparentemente ia ocorrer, já que o barco navegava com uma semana de atraso devido a diversas avarias, teriam de abrigar carga, passageiros e tripulação debaixo de uma lona, sem espaço para pendurar redes, e se a tudo isso se somasse um morto a viagem seria duplamente desconfortável.
     O dentista ajudou a subir a bordo a poltrona portátil e em seguida caminhou até o extremo do cais. Ali esperava Antonio José Bolívar Proaño, um velho de corpo resistente que parecia não se importar com o fato de carregar tanto nome de prócer.
     - Você ainda não morrei, Antonio José Bolívar?
     Antes de responder, o velho cheirou os sovacos.
     - Parece que não. Ainda não estou fedendo. E você?
     -Como vão seus dentes?
     - Estão aqui comigo - respondeu o velho, levando a mão ao bolso. Desenrolou um lenço desbotado e lhe mostrou a prótese.
     - Por que não os usa, velho tolo?
     - Vou colocá-los já, já. Não estava nem comendo nem falando. Então por que gastá-los?
     O velho ajeitou a dentadura, estalou a língua, cuspiu generosamente e lhe ofereceu a garrafa de Frontera.
     Veja só. Acho que ganhei um trago.
     - E não? Hoje arrancou vinte e sete dentes inteiros e um monte de pedaços, mas não quebrou o recorde.
     - Você está sempre de olho no que eu faço?
     - Os amigos são para isso. Para celebrar as virtudes do outro. Antes era melhor, você não acha?, quando ainda chegavam colonos jovens. Lembra-se daquele matuto que deixou arrancar todos os seus dentes para ganhar uma aposta?
     O doutor Rubicudo Loacchamin inclinou a cabeça para organizar as lembranças, e assim encontrou a imagem do homem, não muito jovem e vestido à maneira caipira. Todo de branco, descalço, mas com esporas de prata.
     O matuto chegou ao consultório aompanhado de um bando de sujeitos, todos muito bêbados. Eram garimpeiros de ouro sem canto fixo. Peregrinos, assim eram cahamados pelo pessoal, e não lhes importava se encontravam o ouro nos rios ou nos alforges do próximo. O matuto deixou-se cair na poltrona e olhou-o com expressão estúpida.
     - Diga
     - Arranque todinhos. Um por um, e vácolocando aqui na mesa.
     - Abra a boca.
     O homem obedeceu, e o dentista comprovou que junto às ruinas molares lhe restavam muitos dentes, alguns cariados e outros inteiros.
     - Ainda lhe resta um bom punhado. Você tem dinheiro para tantas extrações?
     O homem abandonou a expressão estúpida.
     - O caso é, doutor, que os amigos aqui presentes não me acreditam quando lhes digo que sou muito macho. O caso é que disse a eles que deixo que me arranquem todos os dentes, um por um sem me queixar. O caso é que apostamos, e o senhor e eu vamos dividir os ganhos meio a meio.
     - Assim que lhe arrancarem o segundo você vai estar cagado e chamando a mamãezinha - gritou alguém do grupo, e os outros o apoiaram com sonoras gargalhadas.
     - Melhor que vá tomar outros tragos e pensar no assunto. Eu não me presto a essas machices - disse o dentista.
     - O caso é, doutor, que, se o senhor não me deixa ganhar a aposta, lhe corto a cabeça com isso que me acompanha.
     Os olhos do matuto brilharam enquanto acariciava o cabo de um facão.
     De modo que correu a aposta.
     O homem abriu a boca, e o dentista fez nova contagem. Eram quinze dentes, e, ao dizer isso, o desafiante formou uma fileira de quinze pepitas de ouro sobre a toalha cardinalícia das próteses. Uma para cada dente, e os apostadores, a favor ou contra, cobriram as apostas com outras pepitas douradas. O número aumentava consideravelmente a partir da quinta.
     O matuto deixou que fossem arrancados os primeiros sete dentes sem mover um músculo. Não se ouvia voar de mosca, e ao extrair o oitavo foi acometido por uma hemorragia que em segundos encheu sua boca de sangue. O homem não conseguia falarm mas lhe fez um sinal de pausa.
     Cuspiu várias vezes formando coágulos no estrado e virou um grande trago que o fez se torcer de dor na poltrona, mas não se quixou e, depois de cuspir de novo, com outro sinal lhe mandou continuar.
     No final da carnificina, desdentado e com a cara inchada até as orelhas, o matuto mostrou uma expressão de triunfo horripilante ao dividir os ganhos com o dentista.


     - Sim. Bons tempos aqueles - murmurou o doutor Loachamín, tomando longo trago.
      A aguardente de cana queimou-lhe a garganta e devolveu a garrafa com um esgar.
     - Não vá passar mal, doutor. Isto mata os bichos das tripas - disse Antonio José Bolívar, mas não pôde continuar falando.
     Duas canoas se aproximaram, e de uma delas surgia a cabeça jacente de um homem loiro.



Capítulo 1 de O Velho Que Lia Romances de Amos, Luís Sepúlveda
Ed. Ática - 1999 págs. 7-13




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