Pular para o conteúdo principal

As Doenças do Brasil, Marcio Salgado sobre o livro de Valter Hugo Mãe


O escritor português Valter Hugo Mãe inspirou-se nos povos originários da Amazônia para criar o seu novo romance As doenças do Brasil. Nele, o guerreiro abaeté, filho do estupro de uma índia por um homem branco, vive um grande conflito ao descobrir-se diferente dos demais. Trata-se de um ato de violência que se repete historicamente de outros modos, e não deveria jamais ser naturalizado.

A história é contada a partir da perspectiva abaeté – uma comunidade imaginária –, numa linguagem com todas as licenças poéticas, pois, conforme o autor, escrever é o “caminho para uma coisa nova, como se a própria língua se tornasse estrangeira”.

O título do romance é uma referência ao Sermão da visitação de Nossa Senhora, de padre Antônio Vieira (1608-1697), como mostra a extensa epígrafe do livro. Nela, o teólogo e filósofo alerta para “a causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde”. Como se vê, vem dos tempos remotos esses desencontros entre o sentido de justiça que a população reclama e os privilégios do Estado brasileiro.

O nome do guerreiro é Honra; quando nasceu libertou o corpo da mãe, e tudo assemelhava-se à normalidade. “O corpo liberto de Boa Espanto era belo e essa beleza era apreciada e havia muita gratidão entre um e outro…”. Contudo, a expectativa de pertencimento do guerreiro logo se desfaz num sinal de estranhamento. No decorrer da história, ele vai tentar resolver o seu conflito vingando-se da “fera branca” que exterminou o seu povo.

Nos limites da comunidade todos celebravam a presença de Honra e o guiavam nos ritos de passagem. “Ser abaeté resultava em graça.” Apesar disso, o guerreiro era inteiro revolta, até que encontra outro desafortunado na floresta, o negro Meio da Noite, que fugira dos castigos impostos aos seus semelhantes escravizados. Relutantes com a nova amizade, atentos aos sinais, os guerreiros juntam as forças para enfrentar os desafios na floresta. Esses eram sempre relacionados à invasão do seu território e às suas trágicas consequências. “As ilhas dos abaeté estavam finalmente encontradas, eram no caminho da cobiça branca, haveriam de ser sempre incomodadas”.

O mundo criado pelo autor une os guerreiros Honra e Meio da Noite num propósito de resistência contra os invasores no rapto das suas riquezas materiais e humanas. A sua verdade poética não fica tão distante de outra verdade, a histórica, embora a sua ficção não se prenda aos aspectos históricos para justificar-se. Ela existe na linguagem inventiva que se estabelece, como a se reconhecer no plano puramente simbólico, A repetição dos trechos dá um tom de mantra indígena. Não é sem motivo que os verbos “entoar” e “abeirar” tornam-se tão recorrentes. Os da comunidade abaeté entoam os seus presságios: “Terás de entoar como quem liberta a onça…” No trecho que se repete: “O inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo”.

O autor, que é português, escreveu um livro sobre o Brasil, portanto, esteve sempre no limiar de duas formas distintas de expressar-se numa mesma língua. Optou então, como é uma característica dos seus escritos, por estabelecer uma linguagem muito particular.

Quando foi contemplado com o Prêmio Literário José Saramago, em 2007, com o romance O remorso de Baltazar Serapião, o Nobel português de literatura falou que o seu livro era um “tsunami, não no sentido destrutivo, mas de força”, e que ler os seus escritos era como “assistir a um novo parto da língua portuguesa”.


Fonte: A Terra é redonda

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Presepe, Manoel Bandeira

Chorava o menino. Para a mãe, coitada, Jesus pequenito, De qualquer maneira (Mães o sabem…), era Das entranhas dela O fruto bendito. José, seu marido, Ah esse aceitava, Carpinteiro simples, O que Deus mandava. Conhecia o filho A que vinha neste Mundo tão bonito, Tão mal habitado? Não que ele temesse O humano flagício: O fel e o vinagre, Escárnios, açoites, O lenho nos ombros, A lança na ilharga, A morte na cruz. Mais do que tudo isso O amedrontaria A dor de ser homem, O horror de ser homem, — Esse bicho estranho Que desarrazoa Muito presumido De sua razão; — Esse bicho estranho Que se agita em vão; Que tudo deseja, Sabendo que tudo É o mesmo que nada; — Esse bicho estranho Que tortura os que ama; Que até mata, estúpido, Ao seu semelhante No ilusivo intento De fazer o bem! Os anjos cantavam Que o menino viera Para redimir O homem — essa absurda Imagem de Deus! Mas o jumentinho, Tão manso e calado Naquele inefável, Divino momento, Esse bem sabia Que inútil seria Todo o sofrimento No Siné