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Síndrome, Luciene Freitas


Hoje a noite
lua alta, faltei
e ninguém sentiu minha falta.
Reccanello

     Vivia numa gaveta, andava de um lado para o outro, roía uma folha de papel e mais outra, ficava empanturrada. Fazia o casulo,abrigava-se como larva protegendo-se das intempéries.
     Lançava-se às escaladas com a casa nas costas. Grande decisão, longa a viagem pela parede, rumo aos quadros. Neles fincava bandeira de posse. A conquista de toda colônia. Nunca se ouviu falar que brigassem por um mínimo de pedaço de papel.

     Inclusa no grupo das miúdas destruidoras silenciosas, tem nos guarda-roupas, quadros e bibliotecas o suficiente, em comida, para os descendentes, até a bilionésima geração, ou mais. Vive, tranquila, no silêncio dos arquivos e onde houver papel ou tecido.
     Ao morrer jaz, insignificante, sem que se perceba uma ausência.
     Pode ser que num futuro qualquer, uma criatura humana folheando livros, deliberadamente, ou divagando numa boa leitura, dê conta de uma mancha mínima na folha. Tente afastar com a unha e pelo desenho tatuado conclua ser um inseto esmagado. Quem sabe a sensibilidade lhe conduza a pensar no mínimovivente, sem expressão, que ali haja perecido?
     Numa fração de segundos identifique-se com o pequeno ser por motivos óbvios - gostam de papéis, de maneiras distintas.
     A disparidade de uma lembrança lhe faz abusar o traste. De paradoxos distantes e semelhantes, apenas num ponto. enquanto um constrói com amor passional as suas histórias, passa para o papel e guarda com cuidado, a traça, com voracidade os devora. Literalmente.


Em: Profundidade Azul. Histórias extraordinárias, 2010. Págs.25-26

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