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Lareira, Elisabete Bárbara

Um dia, vamos ter uma casa com uma lareira, dizia muitas vezes a mãe. Uma lareira grande, que nos faça companhia. E a mãe sorria quando falava na lareira, mas o olhar continuava triste. Sonhava com as palavras, mas o olhar só via os lugares vazios à mesa e as paredes brancas e nuas. Um dia, mãe, vou acender o teu olhar, pensava muitas vezes a filha. Depois ficamos toda a noite a ver dançar as chamas. Depois já podes sonhar com o olhar.
Na manhã do dia de Natal, quando a mãe acordou, sentiu a casa quente. Levantou-se. Foi até à sala. A filha dormia deitada no chão, as faces afogueadas. Ao lado dela, dormiam também vários lápis de cor e vários bocadinhos de giz. Na parede em frente, que antes era branca e despida, estava agora desenhada uma lareira grande, onde dançavam maravilhosas chamas cor de laranja e verdes e azuis. A mãe sorriu com o olhar, aproximou-se da lareira e pegou na tenaz para ajeitar os pequenos troncos de madeira que aqueciam milagrosamente o seu coração.

(Fonte: página lado-a-lado)

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