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Política, Mulheres e Futebol Sempre Foram Assuntos de Barbearia. Não Para Crianças. Ignácio de Loyola Brandão

        Ao me olhar, dia desses, minha mulher alertou:

      - Não vá para Santa Catarina sem cortar esse cabelo!
     Estava quase embarcando para Campos Novos, onde deveria abrir uma festa literária. A cada semana, a cada dia, descubro uma nova cidade realizando um festival, uma feira, uma bienal de livros. Para chegar em Campos Novos deveria apanhar um avião para Florianópolis e fazer baldeação ( palavra que caiu em desuso, era muito usada por ferroviários) para Chapecó, onde um carro iria me esperar e me levar à cidade, rodando duas horas. Quanto mais complicadas, mais gosto dessas viagens, vou penetrando o Brasil, por caminhos, regiões desconhecidos.
     E o cabelo? Olhei no espelho o que me resta. Não está uma juba, como dizia minha mãe. Outra expressão da época de infância e juventude era gadelhudo. Não tem no Aurélio. Mas tive lembranças do barbeiro da esquina da rua Seis com Djalma Dutra, antiga Guaianases, o Lazinho Mendes.
     Lazinho cortou meu cabelo até a maturidade. Adorava voltar à cidade e sentar-me ali. Ele leu meus primeiros livros, tinha orgulho. Quando falava de política revelava-se de esquerda. Minha mãe gostava e tinha medo dele. "É comunista, dizia. Imaginem, o único comunista que conheci na cidade foi o Pedrozinho, um idealista ferrenho. Vivia com a polícia atrás. Perseguido durante a ditadura militar, que perseguia até quem comia melancia, por ser vermelha, Pedrozinho desapareceu, nunca mais soube dele. Como milhares de desaparecidos durante a ditadura.
     Cabelo se cortava aos sábados. Porém não à tarde, que era reservada aos adultos que trabalham durante a semana e até o meio-dia do sábado. A hora da gente grande era chatíssima para as crianças, eles só falavam de política. Discussões bravas, quentes, xingavam, quase se batiam, um era do PSD, outro da UDN, do PSP ou do PTB. Todas as semanas derrubavam governos, consertavam o país. Os políticos já não prestavam, acho que nunca prestaram. Não é de hoje. As mães não levavam os filhos, porque era palavrão para tudo quanto é lado. Os adultos também falavam de mulheres. Sei porque às vezes passava rodando o arco e ficava do lado de fora ouvindo, esta dá, aquela está dando. Não entendia o que elas estavam dando. Todos sorriam e por isso a palavra "dando" me soava encantada. devia ser coisa boa. Cresci com isso. Dar era um momento deslumbrante, importante. Feliz.
     Foi em São Paulo, adulto, que descobri a delícia de sentar-me na cadeira e fazer a barba. Colocavam uma toalha quente no meu rosto, massageavam, cochilávamos, depois passavam o sabão com um pincel de pelos macios. Vinha o ritual da navalha, manejada por mão hábeis. Navalhas eram objetos temíveis, quando nas mãos de marginais. Nada pior do que uma navalhada no rosto. Porém, para os barbeiros eram pura carícia. Sempre me perguntavam: deixa o bigode? Nunca deixei. Eu via o trabalho que dava, meu pai tinha.
     O segundo instante era cortar os cabelos. Não havia tantos cortes diferenciados como hoje, em que a fantasia corre solta. era um único, baixar a juba, acertar as pontas. Alguns jovens deixavam um topete caído sobre a testa, dava um ar sedutor. Copiavam Elvis Presley.
     O ritual durou décadas até que surgiram as máquinas elétricas de barbear e, em seguida, as giletes descartáveis, o Prestobarba etc. Nos anos 1970, os barbeiros quase faliram, ninguém cortava o cabelo ou fazia a barba. Tempos de camisas floridas, bolsa capanga a tiracolo, cabelões e barbas à la Guevara, amor e flor e também a ditadura.
     O tempora, o mores, dizia Luciano, professor de latim do ginásio, duro na queda, mas competente com as declinações e gêneros, tanto que mais tarde consegui entender o alemão. O que vejo hoje? Salões de barbeiros voltando a ser moda ( agora se diz tendência), com toalhas quentes, perfumadas, massagens, cabelos cortados nas mais exóticas formas, é um festival de desenhos, e tudo começou com os ídolos do futebol. Há cremes e loções estrangeiras, francesas ou italianas, podólogos, cafezinho com várias opções. Em São Paulo, tem um salão que oferece chopinho tirado sob pressão. Em lugar de conversas há televisores ou as revistas habituais, Caras, IstoÉ Gente, Quem. Quando se conversa, o assunto entre homens é o mesmo, mulheres. Não as que conhecemos, do bairro ou da quadra. Aquelas célebres, inacessíveis ao comum mortal. Aquelas que são notícia até ao soltarem pum. E que soltam, quando precisam aparecer.

Em: Se For Para Chorar Que Seja de Alegria, Ignácio de Loyola Brandão
Global editora, São Paulo 2016 - págs.25-26

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