Pular para o conteúdo principal

Morte das Casas de Ouro Preto, Carlos Drummond de Andrade


Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não veem. Também morrem.

Assim plantadas no outeiro,
menos rudes que orgulhosas
na sua pobreza branca,
azul e rosa e zarcão,
ai, pareciam eternas!
Não eram. E cai a chuva
sobre rótula e portão.

Vai-se a rótula crivando
como a renda consumida
de um vestido funerário.
E ruindo se vai a porta.
Só a chuva monorrítmica
sobre a noite, sobre a história
goteja. Morrem as casas.

Morrem, severas. É tempo
de fatigar-se a matéria
por muito servir ao homem,
e de o barro dissolver-se.
Nem parecia, na serra,
que as coisas sempre cambiam
de si, em si. Hoje, vão-se.

O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.
Que se incorporem as árvores
hoje vigas! Volte o pó
a ser pó pelas estradas!

A chuva desce, às canadas.
Como chove, como pinga
no país das remembranças!
Como bate, como fere,
como traspassa a medula,
como punge, como lanha
o fino dardo da chuva

mineira, sobre as colinas!
Minhas casas fustigadas,
minhas paredes zurzidas,
minhas esteiras de forro,
meus cachorros de beiral,
meus paços de telha-vã
estão úmidos e humildes.

Lá vão, enxurrada abaixo,
as velhas casas honradas
em que se amou e pariu,
em que se guardou moeda
e no frio se bebeu.
Vão no vento, na caliça,
no morcego, vão na geada,

enquanto se espalham outras
em polvorentas partículas,
sem as vermos fenecer.
Ai, como morrem as casas!
Como se deixam morrer!
E descascadas e secas,
ei-las sumindo-se no ar.

Sobre a cidade concentro
o olhar experimentado,
esse agudo olhar afiado
de quem é douto no assunto.
(Quantos perdi me ensinaram.)
Vejo a coisa pegajosa,
vai circunvoando na calma.

Não basta ver morte de homem
para conhecê-la bem.
Mil outras brotam em nós,
à nossa roda, no chão.
A morte baixou dos ermos,
gavião molhado. Seu bico
vai lavrando o paredão
e dissolvendo a cidade.
Sobre a ponte, sobre a pedra,
sobre a cambraia de Nize,
uma colcha de neblina
(já não é a chuva forte)
me conta por que mistério
o amor se banha na morte.



Em: Claro Enigma
Caricatura de Antônio Sodré

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Presepe, Manoel Bandeira

Chorava o menino. Para a mãe, coitada, Jesus pequenito, De qualquer maneira (Mães o sabem…), era Das entranhas dela O fruto bendito. José, seu marido, Ah esse aceitava, Carpinteiro simples, O que Deus mandava. Conhecia o filho A que vinha neste Mundo tão bonito, Tão mal habitado? Não que ele temesse O humano flagício: O fel e o vinagre, Escárnios, açoites, O lenho nos ombros, A lança na ilharga, A morte na cruz. Mais do que tudo isso O amedrontaria A dor de ser homem, O horror de ser homem, — Esse bicho estranho Que desarrazoa Muito presumido De sua razão; — Esse bicho estranho Que se agita em vão; Que tudo deseja, Sabendo que tudo É o mesmo que nada; — Esse bicho estranho Que tortura os que ama; Que até mata, estúpido, Ao seu semelhante No ilusivo intento De fazer o bem! Os anjos cantavam Que o menino viera Para redimir O homem — essa absurda Imagem de Deus! Mas o jumentinho, Tão manso e calado Naquele inefável, Divino momento, Esse bem sabia Que inútil seria Todo o sofrimento No Siné