Pular para o conteúdo principal

Conversa Sobre Poesia Com o Fiscal de Rendas, Vladimir Maiakovski


Cidadão fiscal de rendas, desculpe a liberdade!
Obrigado... não se incomode...  estou à vontade!
A matéria que me traz é algo extraordinária:
o lugar do poeta na sociedade proletária..
Ao lado dos donos de terras e senhores industriais
estou eu também citado por débitos fiscais.
Nós somos proletários e motores da pena.
A poesia é como a lavra do rádio
- um ano para cada grama.
Para extrair uma palavra,
milhões de toneladas de palavra-prima.
Porém, que flama de uma tal palavra emana
perto das brasas da palavra-bruta!
Tal palavra põe em luta milhões de corações
por milhares de anos.


Você conhece por certo o fenômeno rima.
Em linguagem de fisco
a rima é uma letra a termo fixo
para desconto ao fim da linha
sem mais prazos.
E sai-se à caça da minúcia de flexão ou sufixo
na caixa escassa das conjugações e casos.
Tenta-se pôr uma palavra nessa linha,
ela não cabe, força-se, e se esfarinha.
Cidadão fiscal de rendas, eu lhe juro,
as palavras custam ao poeta um duro juro.
Para nós, a rima é um barril.
De dinamite. O verso, um estopim.
A linha se incendeia e quando chega ao fim
explode
e a cidade em estrofe voa em mil.


No questionário há um monte de quesitos:
“O Sr. fez viagens?  Sim ou não?
Mas, como, se eu fiz vôos infinitos
em dezenas de pégasos nesses 15 anos ?


Cidadão, condescenda, as passagens são caras!
A poesia - toda ela - é uma viagem ao desconhecido..
A máquina da alma com os anos se trava,


e dizem: - ao arquivo, acabou-se, um de menos!
O tempo em sua corrida minhas têmporas esmaga.
E vem então a mais terrível das amortizações
- a de almas e corações, última paga.


A minha dívida é uivar com o verso,
entre a névoa burguesa, boca brônzea de sirene.
O poeta é o eterno devedor do universo,
e paga em dor porcentagens de pena.
Estou em dívida com os lampiões da Broadway,
com o Exército Vermelho,
com vocês, céus de Bagdádi,
com as cerejeiras do Japão e toda a infinidade
a que não pude dar a sobra de uma ode.


Mas, para que afinal essas molduras?
Para que fazer da rima, mira
e do ritmo, chibata?
A palavra do poeta é a tua ressurreição,
a tua imortalidade, cidadão burocrata  .
Daqui a séculos, do papel mudo toma um verso
e o tempo ressuscita.


Cidadão fiscal de rendas, eu encerro.
Pago 5 rublos e risco todos os zeros.
Tudo o que quero é um palmo de terra ao lado
dos mais pobres camponeses e operários.


Porém, se vocês pensam que se trata apenas
de copiar palavras a esmo,
eis aqui, camaradas, minha pena: 
podem escrever vocês mesmos!




in: Maiakóvski – Poemas . trad. Boris Schnaiderman, Augusto & Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva.
Imagem:www.taringa.net

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di...

Vamos pensar? (18)

Será que às vezes o melhor não é se deixar molhar?  

O Mendigo do Viaduto do Chá, Regina Ruth Rincon Caires

     A moeda corrente era o cruzeiro. A passagem de ônibus custava sessenta centavos. O ano era 1974.       Eu trabalhava no centro da cidade, em um banco que ficava na Rua Boa Vista. Morava longe, quase ao final da Avenida Interlagos, e usava diariamente o transporte coletivo. Meu trabalho, no departamento de estatística, resumia-se a somar os números datilografados em planilhas e mais planilhas fornecidas pelas agências do banco. Somas que deveriam ser checadas, e que eram efetuadas nas antigas calculadoras elétricas com suas infernais bobinas, conferidas e grampeadas nas respectivas planilhas. Não fosse o café para espantar o sono durante as diárias e rotineiras oito horas de trabalho, nenhuma soma teria sido confirmada.