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Peraltagens, Manoel de Barros



O canto triste da sariema encompridava  a

tarde.

E porque a tarde ficasse mais comprida a gente

sumia dentro dela.

E quando o grito da mãe  nos alcançava a gente

já estava do outro lado do rio.

O pai nos chamou pelo berrante.

Na volta fomos encostando pelas paredes da casa pé

ante pé.

Com receio de um carão do pai.

Logo a tosse do vô acordou o silêncio da casa.

Mas não apanhamos nem.

E nem levamos carão nem.

A mãe só que falou que eu iria viver leso

fazendo só essas coisas.

O pai completou; ele precisava de ver outras

coisas além de ficar ouvindo o canto dos pássaros.

E a mãe disse mais: esse menino vai passar

A vida enfiando água em espeto!

Foi quase.

(Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, Iluminuras de Martha Barros - São Paulo: Ed.Planeta Brasil,2010)

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