Estávamos dançando abraçados, de frente, da maneira convencional. Ela não queria brincar no cordão,nem queria outra sorte de abraços, nem queria tirar a máscara. Eu gritava n meio do barulho, pedia no seu ouvido: "tira a máscara, meu bem". Ela nada. Ou melhor, sorria, os dentes mais lindos do mundo, de boca aberta. Eu via os molares lá no fundo.
Dançamos a noite toda. No princípio, fiquei muito excitado. Depois, fiquei cansado somente; mas continuamos abraçados, bem apertados. Eu só via o seu queixo, que era branco e redondo; e a boca. Da boca para cima nada. Nem os olhos a máscara deixava ver direito.
Me contaram uma história de um par mascarado que dançava no carnaval. Ele estava vestido de cachorro e tinha uma máscara de gente; ela estava vestida de gente e tinha máscara de gata. Tiraram a máscara ao mesmo tempo. Debaixo da máscara da gata estava a cara de uma mulher; debaixo da máscara de de gente estava a cara de um cachorro; o que tinha corpo de cachorro era cachorro mesmo: as aparências não enganam.
Era o último dia de carnaval e todo carnaval eu sempre fora com uma mulher diferente para a cama. Já na terça feira, mais um pouco o carnaval acabava e eu não teria mantido a tradição. Era uma espécie de superstição como a desses sujeitos que todo o ano vão à igreja dos Barbadinhos. Eu temia que algo malévolo ocorresse comigo se eu deixasse de cumprir aquele ritual.
À meia noite começaram a cantar no salão, com o mais genuíno dos masoquismos, "é hoje só, amanhã não tem mais".
Essa advertência, de que era aquele o último dia, me deixou muito preocupado.continuávamos dançando, ela rindo a três por dois,jogando a cabeça para trás, boca aberta, e eu olhando os seus molares; cheio de medo, pois era só hoje, amanhã não tinha mais.
Nossa conversa era feita de olhares e apertos, pois o barulho da orquestra, dos gritos e apitos, não permitia que conversássemos. de vez em quando apertava a mão dela e ela retribuia; prendia a perna dela entre as minhas, ou a minha entre as dela e novamente sentia receptividade. Beijava-a no pescoço, na orelha; ela raspava na minha nuca uma unha pontuda e afiada como se fosse uma faca.
O tempo doi passando, passando e acabou. Já era de manhã. saimos do baile e, como era verão, o sol iluminava todo mundo. Todos estavam feios, suados, sujos. Aparecia em certas caras a feiura do lábio fino engrossado de batom; peitos postiços saíam de posição;sapatos altos quebravam o salto e algumas mulheres viravam anãs de repente; sovacos fediam; dedos dos pés surgiam calosos e imundos.
Só a minha amiga continuava bonita e fresca como se fosse uma rosa. E de máscara."Já é dia", disse para ela. "Você já pode tirar a máscara."
"Você quer mesmo que eu tire?" perguntou ela.
Íamos andando pela ria, sós. As outras pessoas tinham desaparecido.
"Já é dia", repeti, achando boa a razão que eu apresentava. "Além do mais,o carnaval acabou", disse com certa tristeza. "Hoje é quarta-feira de cinzas."
"Você quer mesmo que eu tire?" tornou ela.
"Já é dia", insisti.
Continuamos andando. Eu de mau humor.
"Vamos para a minha casa?" perguntei urgente e sem esperança.
"Não posso tirar a máscara", disse ela.
"Não tira",disse eu, decididamente. Mas estava apreensivo. Não havia tempo a perder. "Vamos".
Como ela não respondesse, eu a peguei por um braço e a levei para minha casa.
Quando entramos ela disse:
"Não posso."
"Tirar a máscara?"
"Quem falou em tirar a máscara?" disse ela, botando as mãos no rosto e dando um passo para trás.
"Eu não falei em tirar a máscara", defendi-me. "Foi você dizendo 'não posso'."
"Eu não falei na máscara", protestou ela. "Não posso outra coisa."
Eu me sentei e tirei os sapatos.
"Nós dois estamos perdendo o nosso tempo", disse eu. "É melhor você ir embora."
"Você não entende", disse ela.
Num gesto dramático, tirou a máscara.
"Não suporto o meu nariz", disse com desafio na voz.
Era um nariz muito bonito, arrebitado.
"O seu nariz é muito bonito", disse eu. Você é toda muito bonita
"Não sou não", disse ela, com jeito de quem ia chorar. "Vocês homens são todos iguais. 'E daí?"
"O meu problema é não ter duzentos contos.Você me dá duzentos contos?"
"Duzentos contos?"
"Você me dá duzentos contos?" argüiu ela, coo se estivesse me pondo à prova. De boca fechada, me olhava fixamente.
Eu me levantei e vi minha caderneta de cheques do banco. Tinha duzentos justos.
"Dou", disse. Fiz um cheque e entreguei a ela.
"Depois eu pago", disse ela.
"Não precisa", disse eu olhando o relógio. "Hoje já é quarta-feira.""Pago sim.Vou trabalhar e pago. Eu não gosto de dever a ninguém."
"Está certo; você paga".
Bocejamos os dois.
"Os médicos são muito caros, você não acha? Duzentos contos só para operar um nariz", disse ela.
Foi andando em direção à porta.
Eu estava tão cansado que continuei sentado.
"Você vai querer me ver de nariz novo?", perguntou ela.
Eu tive vontade de dizer: "você não precisa de um nariz novo, está gastando dinheiro à-toa; além do mais, me deixou completamente na miséria levando os últimos duzentos contos da minha indenização trabalhista." Mas achei que isso não seria gentil da minha parte e disse somente: "vou."
"Tchau", disse ela, saindo e fechando a porta.
Deixou a máscara em cima de uma cadeira. Era preta, de cetim, com um perfume forte e bom. botei a máscara e fui para a cama. Estava quase dormindo quando me lembrei de tirá-la: um sujeito que sempre dorme de janelas abertas, não pode dormir com uma máscara que lhe cobre o nariz.
Nota: o blog manteve a grafia do ano de lançamento do livro.
Consumismo conspícuo: descreve gastos esbanjadores em bens e serviços adquiridos principalmente com o propósito de mostrar renda ou riqueza. Na mente do consumidor conspícuo, tal exibição serve como meio para ter ou manter status.
Muito interessante, Regina! Aliás, contos são pequenas e preciosas joias da literatura,amo!
ResponderExcluirSem dúvida que são. Rubem Fonseca tem uns ótimos e a blogueira tem disponibilidade para emprestar o livro.
ResponderExcluirabraço.