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Canção da Candeia, Eugênio de Castro

- Feita de lata mesquinha,
Tendo irmãs de bronze e cobre,
Neste covil de miséria.
Fui a candeia de um pobre

Nascida para alumiar,
Como as estrelas do céu,
Vivi em trevas: meu dono
Poucas vezes me acendeu.

Como havia de acender-me?
Ao peso da sua cruz,
Onde tinha azeite o pobre
P'ra me ver florir em luz?

Passamos noites bem negras,
Órfãos de todo o deleite,
Ele, com fome e sem sono,
Eu, ceguinha e sem azeite!

Ontem, estando o triste a ponto
De partir p'ra Eternidade,
Doce mão bateu à porta:
Era a mão da Caridade...

Um pão lhe estendeu piedosa
Com um gesto de enternecer:
Mas era tarde! O faminto
Debalde o tentou comer!

No entanto,a mão generosa
A doce mão de marfim,
D'azeite fino e doirado
À farta me enchera a mim.

Com tal sangue brilhei tanto,
Que a estrela d'alva par'cia;
Mas, par'cendo luz de boda
Alumiei uma agonia.

Tardaste bem, Caridade,
Ao pobre de negra sorte,
Negando-lhe toda a vida
O que lhe deste na morte!

(Canções desta Vida Negra - Portugal 1922)

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