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Papagaio Congelado, Ricardo Azevedo

Um dia, um sujeito ganhou de presente um papagaio.
O bicho era uma praga. Não demorou muito, logo se espalhou pela casa.

Atendia telefone.

Gritava e falava sozinho nas horas mais inesperadas.

Dava palpite nas conversas dos outros.

Discutia futebol.

Fumava charuto.

Pedia café, tomava, cuspia, arregalava os olhos, esparramava semente de girassol e cocô por todo lado, gargalhava e ainda gritava para o dono de casa: "Ô seu doutor, vê se não torra faz favor!"

Uma noite, a família recebeu uma visita para jantar.

O papagaio não gostou da cara do visitante e berrou: "Vai embora, ratazana!" e começou a falar cada palavrão cabeludo que dava medo.

Depois que a visita foi embora, o dono da casa foi até o poleiro. Estava furioso:

— Seu mal-educado, sem-vergonha de uma figa! Estou cheio! Agora você vai ver o que é bom pra tosse.

Agarrou o papagaio pelo cangote e atirou dentro da geladeira:

— Vai passar a noite aí de castigo!

Depois, fechou a porta e foi dormir.

No dia seguinte, saiu atrasado para o trabalho e esqueceu o coitado preso dentro da geladeira.

Só foi lembrar do bicho à noite, quando voltou para casa.

Foi correndo abrir a geladeira.

O papagaio saiu trêmulo e cabisbaixo, com cara arrependida, cheio de pó gelado na cabeça.

Ficou de joelhos.

Botou as duas asas na cabeça.

Rezou.

Disse pelo amor de Deus.

Reconheceu que estava errado.

Pediu perdão.

Disse que nunca mais ia fazer aquilo.

Jurou que nunca mais ia fazer coisa errada, que nunca mais ia atender telefone e interromper conversa, nem xingar nenhuma visita.

Jurou que nunca mais ia dizer palavrão nem "vai embora, ratazana".

Depois, examinando o homem com os olhos arregalados, espiou dentro da geladeira e perguntou:

— Queria saber só uma coisa: o que é que aquele franguinho pelado, deitado ali no prato, fez?

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