Tenho prestado mais atenção nas coisas ao meu redor. Por exemplo, do meu lado direito tem uma árvore centenária que ainda não tem nome mas tem carinha de Angélica. À minha frente tem uma casa e nela uma enorme mesa de vidro que eu chamo de mesa da coragem. Do meu lado esquerdo tem um coração que está assustado como quase sempre, e se encontra no meio de uma reforma das paredes. Os móveis seguem o coração de um cômodo ao outro, curiosos, articulados, parecem ter pernas vivas. Fazem como as coisas em cima do vidro da mesa. Fotos, livros, CDs, quadros, um aparelho de dentes em uma caixinha cor-de-rosa. Todos contam histórias. Os móveis contam mais, contam histórias de outros. São os móveis de minha mãe e pai quando eles se casaram, madeira maciça, retorcida, envernizada, com cara de império. Ao fundo de onde estou tem uma cadela latindo. A encontrei na rua, intestino pra fora, quase uma morte em vida. Depois do resgate e de botar pra dentro o intestino, duas vezes, a pequena desenvolveu princípio de uma doença que trouxe, como sequela, um eterno balançar de cabeça, num consentir que nunca tem fim. Adoro muito quando ela concorda com tudo o que eu falo. Longitudinalmente encontra-se a cozinha e lá vou eu fazer café com uma racionalidade que comprei no supermercado, na segunda prateleira do corredor de produtos importados. O que eu quero mesmo é gritar de raiva do pintor que faltou hoje outra vez. Passo pela sala em transe e chego na cozinha recém derrubada. Onde tinha uma janela e uma porta, hoje tem um vão aberto que é pra eu me sentir maior. Bebo sozinha o café que preparei e percebo que atrás de mim existe pouco remorso. Talvez se eu tivesse me esforçado mais estaria menos assim. Eu sei. Mas quem vai viver que não vacila? Por dentro do “corpo-casa” ou do meu “mundo-edifício” eu forjo uma razão especial para continuar sendo. Ao me mudar de cidade há 3 anos alojei uma nova perspectiva em mim; eu, os móveis, as coisas e até a cachorrinha Mel encontramos um canto mais oportuno para enraizar. Esse é o meu novo começo, nele experimento viver e virar raiz ao mesmo tempo e respeito a terra abaixo de mim. Quando vim para esta casa ela era do meu pai. Passou a minha como se eu fosse ele, e agora sou eu que cuido do jardim em forma de floresta que se comunica com o meu novo e admirável mundo interior. Eu quero virar uma planta, um bicho, tal a força da natureza; ser um mini Deus onipotente na minha “bolha” de concreto; preciso acreditar que sou valiosa. Pelo antigo dono desta casa pintei as paredes com boa tinta que é pra ouvir melhor os passarinhos que sem sorte, às vezes caem dos ninhos e morrem nas minhas mãos que socorrem sem solução. Pelo antigo dono da casa melhorei um pouquinho a instalação, apenas pra enxergar melhor a vida correndo pelos canos engenhosos que a distribuem. Não que fosse necessário melhorar, eu era alegre já. Não que fosse necessário pintar, ela era linda já. Quando vim para esta casa a imaginei na filosofia, um lugar místico e preservado por um Ser superior a nós, que tudo vê e ouve. Hoje acredito que ela é mais física, união de quatro paredes e um teto encimado pelo ar que respiramos, e pelo Ser que é a própria essência. Toda casa é igual. O que a minha tem de diferente é que ela me chama pra sair e ver o mundo do lado de fora.
A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di
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