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Língua Na Areia, Natalia Borges Polesso

 


⠀⠀⠀⠀⠀Além do mais, já não tinha medo. Era questão de entendimento mútuo. Não pensou nem por um segundo que um dos dois pudesse ser tão velhaco. Só que um dos dois era. O frio arrepiava tanto a pele que eu parecia uma galinha depenada. Miúda e desengonçada. Pescoço fino, dobrável, maleável vareta. Já não tinha aflição de areia. Tinha desejo de meter a língua nos pequenos buracos de tatuíras. Sentir a cócega do sal. Sentir a cócega da água. Sentir a cócega do bicho cavando areia, sumindo dentro do mundo. Sumindo para ser encontrado depois, criatura ancestral. Imagina se fosse do meu tamanho. Ou do tamanho de uma galinha. As praias erodidas. O mar se demorando em chegar à costa, porque precisaria preencher os vãos. A língua dançando no vazio. Me chamavam para fazer uma fotografia. Mas eu não ouvi. O vento era tanto que carregou o pedido para longe. Carregou o meu nome para longe. Se desfez em sílabas em sons nasais, em língua colada no céu. Da minha boca tirei os cabelos grudados. E como grudava essa estesia. Relhavam meus olhos os finos fios. Me chamavam para fazer uma fotografia. Abri bem as pernas para firmar o peso, acabei criando mais atrito com o vento. A água não se ajeitava. A água não se coordenava com os meus pés, que afundavam lentos na areia fina debaixo da pequena maré. Me chamavam para fazer uma fotografia. Dessa vez, um bloco de vento joga o meu nome na direção certa, rebentando em meus ouvidos. Dei as costas para o vazio contínuo que soava. Aquele som de nada, absolutamente preenchido, contínuo, aquele som sem pausa, que parece o nada, que parece o mudo do mundo, aquele som de água móvel, sem pausa, eu dei as costas para o vazio. E vi a máquina fotográfica posicionada nas mãos da minha tia. Botei a língua para fora. Abri os braços para que o equilíbrio me segurasse pelos sovacos. Botei a língua para fora e senti o sal nos meus cabelos. E vi a máquina fotográfica baixar das mãos da minha tia, vi a máquina fotográfica pendurada em seu pescoço, vi seus lábios projetarem um rumor que foi arremessado para longe. Eu vi. As vogais sendo engolidas pelo vento, suas vogais cheias de cuidado, suas vogais bem articuladas, sendo roubadas pelo vento. Suas mãos espalmadas na minha direção não detiveram a onda às minhas costas, minhas costas não detiveram a onda que chegava à costa, a costa não deteve a mágoa. Não era muita, mas era o suficiente para arrastar uma galinha de pernas finas. A língua não teve tempo de se desvencilhar dos fios e foi projetada, como se desejasse salvar-se a si sem o resto da boca, sem o pescoço, sem o corpo, talvez. Como se apenas a língua importasse. Os dentes não perdoaram. Chegou antes, de fato. Correu areia e conchas e mães-d’água e sangue pouco. Chegou antes machucada, cheia de sal. Chegou antes à aspereza do grão, de cada grão, dos sulcos que seu próprio peso inventava no mundo, das brechas se abriam e se fechavam em sua passagem. E nunca mais deixou de ser daquele modo.

Imagem: site Inquietaria.

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