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Aquele Meu Tio, Anderson do Prado Silva

Existem os que são, porque conhecemos. Existem os que não são, porque não conhecemos. E existem os que nem são, nem não são, porque mesmo desconhecendo-os, nós os conhecemos. Nossos parentes são desse terceiro grupo: sabemos deles o bastante para não serem desconhecidos, porém nunca sabemos o bastante para dizer que os conhecemos. Mas aquele, aquele parente, um entre tantos, espécime único, não era nem de um grupo, nem do outro, nem do outro ainda. Ele era, e continua sendo, o mais misterioso e assustador dos parentes, mesmo não sendo nada disso. Ele era de se ver passar.
Quando criança, eu o via sair, eu o via chegar, eu o via passar. Do que hoje tenho dele, é um vulto. Como pode não saber? Não sei. A cor de seus olhos. O branco, o amarelo ou o preto de seus dentes. O desenho de seu rosto. Se os cabelos lhe sobravam ou faltavam. Se tinha ou fazia a barba. Conheço-lhe o vulto e a voz. Ele tinha um jeito doce de dizer “Oi” e o vocativo do meu nome. Às vezes perguntava o “Tudo bem?”. Dias outros, minha avó dizia: “Está agitado hoje”. Nos dias dessa fala, ele gritava. Assustava, mas só um pouco. Não gritava comigo, gritava com os seus.
Sempre quis saber quem eram os dele. “Com quem o tio fala?” “Fala sozinho.” Era uma sentença simples, mas óbvia demais para que eu pudesse aceitá-la. Ninguém jamais fala sozinho. Fala-se consigo mesmo. Fala-se com o imaginado, com o suposto. Mas não se fala sozinho. De dentro de nós, há sempre uma voz que nos fala. Quando a contradição é muita - faça isso! não faça! por que faria isso? por que não faria? -, quando a contradição é muita na cabeça da gente, muitas são as vozes que lá de dentro nos falam. E quando muitos falam, sempre tem alguém que grita. Esse meu tio gritava.
As vozes que falam na cabeça da gente já estavam lá antes que nós mesmos estivéssemos. Ao longo da vida, outras vozes se somam. Mas nem sempre somam para aumentar. Por vezes diminuem. Somos o resultado possível desse embate. Na guerra, sempre alguém tomba. Não é bonito de se ver. Mas é a guerra. Refluxos de quando a racionalidade falta. Quem fala se supõe ouvido. Mas, se não éramos nós que ouvíamos, quem o ouvia? A tormenta dele era nossa tormenta, mas tormenta nossa apenas dos que se importavam. Para os demais, ele era apenas louco. É consolo ser simples. Do raso, vê-se facilmente o fundo. Duro é ser fossa abissal.
De olhos metidos nesses profundos, eu me via na constante de querer saber quem ele era. Filho de minha avó e irmão de meu pai era um começo. O que está demasiado perto é o que menos se vê. Que o diga o nariz! Pra entender da vida, é preciso tornar à infância. Envelhecer desensina. É interromper a leitura e tentar o exercício, nada complicado demais, arraia miúda dos tempos de nossos primeiros tempos. Basta fazer vesgos os olhos. Viu quem taí? Ele mesmo, seu nariz! Aí que está, aí que sempre esteve. Não tem tempo que você não o via? Só as crianças sabem do próprio nariz. E apenas elas se dedicam à indicadora limpeza do salão.
Ele era e continua sendo meu tio, ao menos até que me provem o contrário. Da mãe se presume o filho. Do tio se presume o sobrinho. Foi-me dito que era meu tio, meu tio é que ficou sendo. “Quem é ele?” “Seu tio.” “Ah.” Mas ele já tinha passado. Não me pegou no colo. Não me atrapalhou os cabelos. Não me torturou: “Vou pegar o seu piu-piu!” “Não pega! Não pega! O piu-piu é meu!” Não, desse tio a passarinhada sempre esteve a salvo. Assim que me viu, foi como se não me visse mais. E partiu para suas cotidianas andanças.
Apesar de nunca ter me visto, do jeito certo de se ver pessoa - olho no olho e, depois, olho disfarçado no resto do corpo -, ele sempre soube quem eu era. Filho do meu pai, sim senhor. Neto da minha avó, sim senhor. Seu sobrinho portanto, também sim senhor. Sempre me tratou pelo correto vocativo, esse mesmo que é o meu nome, e que me faz ser quem eu sou ou, ao menos, quem meus pais e o cartorário me fizeram. O que nunca engoli - verbo que se usa para significar aquilo mesmo que significa, que é pedaço de carne duro demais para os dentes, grande demais para a garganta e mastigado demais para o prato -, o que nunca engoli é eu nunca ter sabido o nome desse meu tio.
É claro que ele tinha seu dístico, todos que importam têm. A terra, que antes era só terra, ganha cerca e porteira e, para logo, afixam-lhe um dístico: Sítio Meu Recanto, Fazenda Minha Terra. O animal, quando feito doméstico, ganha coleira e tigela e, porque tem dono, ganha um nome: Fiel, Bichento. Mesmo o cão, se Cão chamado, ganha maiúscula na primeira. E ainda os que domesticam o que até ontem se comia dão nome aos bois, ou melhor, ao porco: Pink, o que seria mais uma constatação do que um nome, ou Bacon, o que seria uma sentença, ou Suculento, que seria puro escárnio.
Assim é: as coisas do homem têm nome. Impossível o convívio com o inominado. O que não tem nome assombra. Daí se dizer: aquele que não deve ser nomeado - mesmo o nome se negará ao decaído, ao tinhoso. O convívio com o que nome não tivesse abriria uma brecha no espaço, seria uma coisa que estaria sem estar. Apontaríamos o dedo e diríamos “Isto é”, e a afirmação cairia na vacuidade do absoluto vazio. Tal coisa sem nome seria a própria potência, que sem nada ser, poderia ser tudo. O próprio universo primevo, o que antecedeu todas as coisas, aquele de antes do “Faça-se!”, mesmo esse universo invejaria essa coisa sem nome que, como ele, o universo, poderia, naquele inaugural momento, ser todas as coisas.
Nós vemos a coisa sem nome, nós lhe apontamos o dedo, mas, se não a denominamos, ela nos escapa. Temo-la diante dos olhos, mas ela nos foge. Olharíamos ao redor, gritaríamos “Olhem, é” e ouviríamos ao longe “É o quê?”. E seria como se estivéssemos loucos, vendo sem poder mostrar. Eis o perigo de se ver uma coisa nova, de ver o que depois não poderia ser contado porque nome não tem. Foi-se o tempo dos homens que, sós no deserto ou nos cumes dos morros, viam, ouviam e, quando contavam, as multidões acreditavam. Esses homens diziam: “Se me apareceu” e em terra os joelhos do povo caíam. Hoje, daqueles homens, diriam: “É louco”. Por isso, para que não nos acusem, quando nos deparamos com o novo, damos-lhe nome. Do anfíbio perereca que se destacasse pela sua especial negritude, logo batizaríamos Scinax nigrum, e nos livraríamos desse oco.
Certa é a necessidade de que aquele tio tivesse um nome, mas, se um dia lhe deram, esqueceram de me contar. Ficou-lhe a alcunha, o que não é mau, já que o apelido, no comumente das vezes, mais diz de nós do que nossos nomes. Se dois, nascidos ambos José, mas sendo apelidado um Minotauro e o outro Louva-a-Deus, logo adivinharíamos suas compleições e mais seguramente decidiríamos se ficar ou correr, provando, num silogismo de todo evidente, que a hombridade e a macheza, que tanto orgulha a alguns, está mais fora do que dentro. Se diferença há entre o que faz homem e o que faz mulher, certamente não é, naquelas circunstâncias, ficar ou correr. Pois, demasiado arbítrio, seria entregar ao apelido alheio a titularidade sobre nossa libido.
O nome é ex ante. Está lá antes mesmo que nós estivéssemos. “Eduarda! Minha filha se chamará Eduarda!” É o cochicho do amante no ouvido da amada. Sagaz, sutil convite à cópula. Toca sem tocar. O nome do rebento, assim anunciado, ao sussurro, rente ao ouvido, fala alto à parte impudica. O arrepio se estende do detrás da orelha até o meio do corpo. Embuste que aguilhoa a amada. “Oh! Ele me ama! Quer ter um filho comigo! Constituir família! Quer-me para mulher e para mãe! Filhos, oh, amados filhos!” Pobre botão em flor. Por que te abres? Será tua ruína. Depois de abrir-te toda flor, cairão tuas pétalas. Enfim, batizada e concebida a cria, apenas o apelido fará autêntica justiça a essa Eduarda, que poderá ser Bela, ou só feia mesmo, que por delicadeza se deixa de apelidar.
De médico e louco, todo mundo tem um pouco, mas louco, louco mesmo, só se rasgar dinheiro, é o que ensina o povo. Por tal diagnóstico, de louco meu tio não tinha nada. Sem as amarras do método científico, o povo esvaziaria os manicômios. Deve ter sido esse mesmo povo, no meio do qual meu tio passava seus dias, e no meio do qual nasceu e foi criado, que o poupou das heterodoxas práticas dos nosocômios de loucos. Acordava cedo, saía às ruas, deambulava e perambulava. Ele andava. Como andava! De onde vinha tanta perna? Quando tornava, aparecia à cozinha, servia-se do pouco, frio ou ao tempo, conforme a estação, e depois se trancava no quarto de seus mistérios.
Não ocupava os mesmos cômodos que nós, os sãos. Tinha de seu, reservado aos fundos, um quartinho de porta e janela. Ali, por certo, haveria uma cama, talvez um armário, quem sabe uma televisão. Como saber, se nunca entrei? Desse cômodo, como de meu tio, eu conhecia apenas a fachada, quando muito. O quarto fazia parte de sua aura mística. Adulto, em retrospecto, me pergunto como pude escapar à curiosidade de meter a visão pelos vãos da janela. É que o homem que eu sou já estava na criança que eu era. Diziam: “Bem comportado! É um homenzinho!”
No seu quarto, de pequeno que era, adivinhava-se faltas. Viver com tão pouco. Nada ter. O mundo ensina que não pode. Ainda assim, lá estava ele, ao oposto da correnteza, provando o impossível. Seria um convite? Tentador demais para quem, como eu, sempre gostou de divagar. Ócio que convida. Coloquei-me a imaginar que caminhos sua mente teria percorrido até lhe abandonar naquela existência acéfala. Talvez, para não ser privado de tudo, privou-se antes de si mesmo, pois a miséria, segundo soube por intermédias vozes, estava lá desde o instante mesmo de sua aurora. Em casa de cômodo só, meu tio nasceu para dividir o espaço, ou a falta dele, com dez. O alimento, ou a falta dele, também. Nem todos enlouquecem. Mas nem sempre é possível ser tão forte. Entregar-se à ausência, ainda que não o único, era caminho que estava lá, apresentando-se às esquinas.
Certa vez, ousei perguntar. “Por quê?” “Sempre foi assim.” Assim como? Louco? Nunca foi criança? Nunca brincou de sonhos? Não teve adolescência? Não conheceu mulher? Entre ditos e desditos, escutei que fora casado e tivera filhos. Mas como? Quando? Por quê? E com quem? Onde estariam? Abandonaram-no? Ou ele antes os abandonou? Só porque louco ou louco porque só? Nunca obtive respostas, mas também nunca fiz as exatas perguntas. Era difícil alcançá-lo. Eu lhe tinha medo. O louco é o que mais tememos em nós.
E de dizerem que ele era assim mesmo, que nascera dessa maneira, flagrei-me suspeitando da genética que, por linha de ascendência, compartilhávamos. Se era inato, haveria de haver algum erro genético. Eu me via nele, na sua angústia, nas suas andanças, no seu ir e vir. No seu desencontro, no permanente procurar e nunca encontrar. No vazio desesperador. O que ele procurava, eu também procurei. Encontrar, nunca encontrei. Mas o sentido estava ali, eu só não podia ver. E se alguém visse, estaria perdido esse mistério que nos faz caminhar para o certo destino que, por estertores, acomete tudo o que é vivo.
Quando todos se foram, ainda lá estava ele. Viu tombar sua mãe, minha avó. Viu tombar os seus pares. Pelo velório de cada um, ele passou. Leve, etéreo. Não posso dizer que o vi. No embaçado das lágrimas, apenas o pressenti.

No dia seguinte, depois de ver baixar aquele penúltimo caixão de meus tios, lembrei de passar na casa que fora da minha avó para saber se o louco, que agora era meu, reclamava algum cuidado. À rua, encontrei o portão destrancado. Também destrancada, encontrei a porta da casa. Percorri o cheiro de mofo dos cômodos vazios. Quando me cansei, lembrei a que vinha e fui atrás do meu tio. Nos fundos do quintal, procurei o seu quarto, mas o cômodo quadrado, de porta e janela, não estava lá. Confuso, dei volta à casa, na certeza de que em algum canto daquele quintal encontraria a alcova de meu tio. Quando finalmente me convenci da inutilidade da busca, fiquei para sempre sem saber se o louco era eu.

Imagem: Spiritfanfiction

Comentários

  1. Oi! Consegui um tempinho para ler o seu conto. Gostei muito, principalmente por ter sido uma leitura perturbadora pra mim. Essa imagem desse homem me é um pouco familiar, pois minha sogra sofre de esquizofrenia. E já passamos poucas e boas com ela... Mas ela toma remédio rs. Gostei bastante desse jogo de palavras que só fazia aumentar o suspense por quem seria esse homem. O final foi bom, eu gostei, quebrou a minha expectativa. Parabéns!

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