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Meu Pequeno Oratório, Cora Coralina

Minha Nossa Senhora das Graças

toda minha.
Das raízes e dos troncos.
Das florestas e das frondes.
Dos rios que correm para o mar
e dos corguinhos sem destino.
Dos altares, dos montes e das grunas.
Dos pássaros sem voo,
e das rolinhas bandoleiras.


Nossa Senhora das cigarras imprevidentes
que morrem de cantar
e das formigas previdentes
que morrem sem cantar.

Das abelhas rufionas
que vão de flor em flor
segredando de amor
e acasalando os polens.
Das cobras e dos tigres
que também têm direito à vida.

Nossa Senhora 
dos maus e dos bons.
Profundamente minha
porque de todos os anônimos
bichos e gentes

Nossa Senhora
da custódia das sementes...
lançadas ao léu da vida
germinando, crescendo, florescentes
ou morrendo perdidas na raleira.

Nossa Senhora das sementes...
Ajudai todas elas - boas e más
a bem cumprir o seu destino
de sementes
lançando do seu pequenino
coração vital
o esporo à raiz fálica
que as confirmarão na terra
e na sequência das gerações
através do tempo.

Nossa Senhora das raízes...

Eu sou a raiz ancestral,
perdida e desfigurada no tempo
obscura na terra
onde lutam, sobrevivem
e desaparecem todas
no esquecimento e no abandono.

Vigia para mim
e guarda em vida longa
todas as raízes novas
que vivem enleadas
às minhas
já gastas e amortecidas.

Abençoai, minha Nossa Senhora,
todos aqueles que se foram e que se desfizeram
na obscuridade e no esquecimento
da árvore ingrata que os alimentou.

Coralina, Cora. Meu livro de cordel, Ed.Global, págs.52-54


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