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Pra Não dizer Que Não Falei de Futebol, Artur Carvalho


    
Eu nunca consegui ser um torcedor de futebol digno do nome. Um desses torcedores normais, entende? Que vai ao estádio gritar por seu time, ou pelo menos um desses que ficam em casa, assistindo aos jogos pela TV. Pra ser sincero, eu bem que tentei. Quando era moleque, fui até sócio da Torcida Jovem da gloriosa Associação Atlética Ponte Preta de Campinas. Mas eu não consegui pegar o jeito da coisa. Enquanto que para os meus companheiros a derrota da Ponte significava uma tragédia grega, para mim tanto fazia.
      - Mas o que é que você está fazendo?
      - Eu? Pedindo uma cerveja, oras.
      - Mas como é que você pode pedir cerveja numa hora dessas?
      - E o que é que você queria que eu pedisse? Cianureto?
      - Bem, não deixa de ser uma idéia...
      Mas esses torcedores assim, a gente até que consegue entender. Eles estão lá, querendo o bem de uma agremiação que eles conhecem desde crianças. É uma coisa bastante parecida com o patriotismo. Todos nós queremos o bem do nosso país. Lutamos por ele. Torcemos por ele.
      Agora, o que não dá pra entender são esses caras que torcem CONTRA os outros times. Às vezes, eles torcem mais contra um time do que a favor do time deles mesmos. Têm uns palmeirenses vizinhos meus que a coisa chega a ser até meio doentia. No dia em que o Santos perdeu para o Boca Juniors, na decisão da Taça Libertadores da América, os caras soltaram até rojão. Eu, que não estava assistindo ao jogo, teve uma hora que achei que o Santos estava dando uma sonora goleada no Boca.  Era um rojão atrás do outro. Gritos de gol. Fiquei curioso. Fui ligar a televisão e o Santos perdia de três a um. Logo depois, o jogo acabou, e os vizinhos saíram para a rua aos berros. Eu não me lembro de eles terem feito tamanha festa nem quando o Brasil foi pentacampeão. E neste último domingo a coisa se repetiu. Desta vez a vítima foi o Corinthians, que perdeu pelos mesmos três a um do Atlético do Paraná. A maior festa. Até mesmo as crianças da casa saíram para a rua, e balançavam bandeiras para os carros que passavam. Bandeiras do Palmeiras, evidentemente.
     A reação dos meus vizinhos mostra bem o que é que essa sociedade competitiva está fazendo com a gente. Ninguém mais se importa realmente com sua própria situação, contanto que seus vizinhos estejam em situação pior. O lance não é ter um carro zero. Se o vizinho tiver um carro 99, basta ter um carro 2.000. Ninguém coloca o filho na melhor escola para garantir o futuro das crianças, mas porque o primo matriculou os filhos deles lá, e a gente vai colocar os nossos numa escola pública?  Mas de jeito nenhum!
      Uma vez eu precisei fazer uma reforminha na minha casa. Nada muito significativo, uma pinturinha aqui, um murinho ali, um jardinzinho acolá, mas, depois de terminada, ficou até que bastante apresentável. Bem, estava eu chegando numa tarde, e encontrei o carro de um colega de serviço estacionado na frente de casa. Eu nem tinha parado direito e ele já estava descendo do carro. Parecia furioso.
      - Como é que você foi fazer uma coisa dessas sem me consultar?
      - Mas fazer o quê?
      - Reformar a sua casa, oras!
      - Mas para quê eu teria que consultar VOCÊ para reformar a MINHA casa?
      - Porque agora a minha mulher quer que eu reforme a nossa também, será que você não entende?!
      Tem coisas que eu não entendo mesmo. E, sinceramente, acho que prefiro ficar sem entender.

Fonte: Carta Maior

Nota: o blog manteve  grafia original. 


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