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Sonho de Sabiá, João Batista Siqueira (Cancão)

Um sabiá diligente
            Voou pela vastidão
            Mas por inexperiente  
            Caiu em um alçapão  
            Depois de aprisionado
            Ficou mais martirizado  
            Pensando no seu filhinho
            Implume, sem alimento,
            Exposto à chuva e ao vento
            Sem poder sair do ninho.


Deram-lhe por seu abrigo
Uma pequena gaiola  
Num casebre de um mendigo  
Que só comia de esmola  
Só vivia cochilando  
Com certeza imaginando  
Sua liberdade santa Ia cantar, não podia,  
Que sua voz se perdia
Logo ao sair da garganta.


Tornou-se a pena cinzenta
Em seu profundo castigo
Na saleta fumarenta
Da casa do tal mendigo
Sempre triste, arrepiado,  
Nesse viver desolado
Ia um mês, vinha outro mês,  
Assim completou um ano
Sentindo o seu desengano  
Nunca cantou outra vez.


Dormindo, uma tarde inteira  
O pobre do passarinho
Sonhou que ia à palmeira  
Onde tinha feito o ninho  
Olhava, em frente, as campinas  
Via por trás das colinas  
A natureza sorrindo
Ao sentir a liberdade
Pensou ser realidade  
Sem saber cantou dormindo.


Depois, sonhou que voltava  
À terra dos braunais  
Por onde sempre cantava  
Junto a outros sabiás  
Pousava nas laranjeiras,
Passava nas ribanceiras  
Olhando o clarão do dia  
Voava por sobre o monte,  
Voltava a beber na fonte  
Que toda manhã bebia.


No sonho via as favelas  
Criadas nos carrascais
Voou, baixou, pousou nelas
Cantou os seus madrigais  
Voltou, e colheu orvalhos  
Que gotejavam dos galhos
Dos frondosos jiquiris  
Contente, abriu a plumagem,  
Pra receber a bafagem  
Das manhãs do seu país.


Foi à terra dos palmares  
Atravessou toda a flora
Cantou por todos lugares
Que tinha cantado outrora
Passou pelos mangueirais
E com outros sabiás
Cantou sonora canção  
O seu som melodioso
Estava mais pesaroso
Devido a sua emoção.


Viu a vinda do inverno
Nos quadrantes da paisagem
Ouviu o sussurro terno
Do bulício da folhagem
Cantava pelo arrebol,
Com o brilho morno do sol
Morrendo nos altos cumes  
Sentia, quando cantava,
Que seu coração chorava
Com mais tristeza e queixumes.


Sonhou catando semente  
Num campo vasto e risonho
Se sentia tão contente
Que sonhou que fosse um sonho
Olhava pra vastidão
Sentia no coração
Um regozijo profundo
Todas delícias sentia
Às vezes lhe parecia
Vivendo fora do mundo.


Atravessou os verdores,
Passou por entre as searas,
Cantou pelos resplendores  
Das manhãs frescas e claras
Passou por um campo vago,
Bebeu das águas de um lago,
Pousou em um arvoredo,
Entrou em um bosque escuro,
Aí sonhou um futuro  
Tão triste que teve medo.


Depois, sonhou que estava
Trancado numa gaiola
Ouvindo alguém que cantava  
Na porta, pedindo esmola.
Ao despertar de momento
Reparou seu aposento,  
Ouviu falar o mendigo
Fechou os olhos pensando
Sentiu seu íntimo chorando
No rigor do seu castigo.


Ainda em vão procurava  
Sair daquela prisão
Seu olhar denunciava
Piedade e compaixão
Ao pensar na liberdade
A mais pungente saudade
Devorava o peito seu
Assim, o cantor da mata,
Ferido da sorte ingrata,
No outro dia, morreu.

Fonte: Jornal da Besta Fubana

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