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Maria Veléria Rezende, Uma Freira Escritora e Feminista.


  

“Anote direitinho porque estou cega, mouca e fraca do juízo. Qualquer hora bato as botas”, brinca Maria Valéria Rezende.

   
Sobrinha-neta do poeta parnasiano Vicente de Carvalho, diz que uma de suas primeiras lembranças é a de escritores reunidos na casa de sua avó, em Santos, onde nasceu e foi criada. Aprendeu a ler sozinha, em francês. Estudou em um colégio de freiras e nunca pensou em se tornar escritora porque se encantou com as missões feitas pelas religiosas que eram suas professoras. Na faculdade, uniu-se a movimentos da juventude católica, conheceu a Teologia da Libertação e, em 1965, virou noviça. Faz parte da Congregação de Santo Agostinho, de religiosas educadoras de meninas e que não precisam usar hábito. “Quando éramos meninas, nos perguntavam se já tínhamos optado por ser freira ou por casar. Escolhi fazer os votos, que era muito mais divertido”, conta a irmã, entre uma baforada e outra de cigarro, hábito que mantém há 60 anos “e que não tem nada a ver com religião porque o papa também fuma”. Como missionária, morou na Argélia, no Timor, na China e no México, onde ensinou camponeses a ler e a escrever – trabalho que também desenvolveu no interior do Brasil. 

 
     Hoje, mora em João Pessoa em uma casa com outras quatro freiras. Em nenhum momento deixou de escrever porque “era o que tinha para fazer nos lugares desertos”. Publicou Vasto Mundo, o primeiro romance, em 2001. Em 2016, ganhou o Jabuti com Quarenta Dias, em que narra a história de uma mulher que vaga pelas ruas de Porto Alegre. Para compor o texto, ela mesma dormiu nas ruas da capital, por onde também perambulou a esmo por 15 dias. Autodeclarada feminista, luta agora para resgatar e promover escritoras brasileiras. Para isso, ajudou a fundar o Mulherio das Letras, um grupo que reúne mais de 5 mil romancistas, contistas e poetisas aqui e no exterior. “São as mulheres que estão escrevendo o que há de melhor. Os homens estão se dedicando à ‘literatura da brochada’, o mimimi deles”, afirma, aos risos, esta rebelde.
Marie Claire Como surgiu o Mulherio das Letras?
Maria Valéria Rezende Nos últimos anos, com os novos prêmios literários e editoras alternativas, os nomes das escritoras começaram a aparecer. A gente começou a se encontrar e todas reclamavam do pouco espaço nas grandes editoras. Na Flip de 2016, conversando pelas esquinas, decidimos nos unir. Criamos um grupo no Facebook. Agora são mais de 5 mil pessoas. Fizemos um encontro em João Pessoa e estamos discutindo a tradução de brasileiras para outras línguas. 

MC Vocês se considera feminista? MVR Claro! Mas não sou histérica. O Mulherio é uma resposta ao machismo no mundo dos livros. Já me aconteceu de estar em um evento literário e nenhum dos escritores me cumprimentar mesmo sabendo quem sou. São os mesmos que fazem o que chamo de “literatura da brochada”. Os velhos, de mais de 60, criam personagens que ficam lembrando do atletismo sexual em todo o romance. É o mimimi deles
MC Como se iniciou na literatura?
MVR A casa da minha avó, em Santos, era um ponto de encontro de escritores. Discutia-se de tudo. Além disso, a literatura está na família. Lia as poesias de meu tio-avô Vicente de Carvalho, isso formou meu imaginário. Muito criança comecei a escrever cartas para a minha avó, em forma de narrativas. Não parei mais. Na faculdade de pedagogia [no Sedes Sapientiae, em São Paulo], entrei para a juventude católica.
MC Por que decidiu ser freira?
MVR Quando eu era mocinha, era normal ser freira. Eu admirava as irmãs do meu colégio que percorriam os povoados de pescadores, índios guaranis e quilombos na Serra do Mar e ensinavam puericultura, primeiros socorros, horticultura, alfabetizavam as moças. Meu pai, que era médico, também participava de missões e me levava para ler histórias para as crianças. Minha vida missionária começou cedo. Pensei: “Vou ser freira, que é muito mais interessante do que ficar em casa cuidando de marido e filho”. Tinha que aturar dois anos de noviciado fechado, mas paciência.
MC Não pensou que sentiria falta de sexo e da vida conjugal?
MVR Não, coloquei essa energia em outros projetos. E duvido um pouco quando ouço que a pessoa não consegue ficar sem transar. Cada ano que passa, digo: “Obrigada, meu Deus, como fui inteligente”. Os homens mentem muito e o que querem é um buraco. Quando morava em Guarabira (PB), tinha um barranco perto de casa. Os menininhos ficavam ali, encostados, enfileirados. Fui lá ver, tinha um monte de buraquinhos. Cada um tinha o seu! A relação dos homens com o sexo não passa pelas mulheres, mas pela atração pelo próprio penduricalho. Uma esquisitice, já pensou? Parece – pelas informações que tenho, porque nunca pude nem me interessei em verificar – que tem uns tortos.
MC E como foi a clausura?
MVR Podia ler à vontade, desenhar, fazer esculturas. Teve uma história engraçada. Depois de três meses no convento, uma amiga que fumava foi me visitar. A madre passou e viu o cinzeiro cheio de bitucas. Não falou nada, só olhou. Quando a amiga foi embora, me perguntei: “O que estou fazendo aqui que não posso nem fumar um cigarrinho?”. Fui para o escritório da madre, falei que não queria mais seguir. Ela abriu uma gaveta, pegou um maço de cigarro e disse: “Você quer ir embora ou é disso que você tem vontade?”. Ela me deixou fumar um cigarro depois de cada refeição, no meio do mato, para não influenciar as outras meninas. Depois de um tempo, encontrei outra noviça fazendo a mesma coisa [risos]. Ela tinha uma sabedoria, né?

MC Você também ajudou militantes a combater a ditadura?
MVR Ainda na faculdade, passei a fazer parte da juventude católica que era de esquerda. Quando saí da clausura, em 1967, me formei e fui dar aula no Colégio Madre Alix, em São Paulo. A coisa começou a ficar feia e passamos a empregar companheiros na escola com outros nomes. As madres sabiam de tudo. Em 1968, quando deram o golpe, estava no Uruguai e não consegui voltar para casa. Passei três meses fazendo articulação pela América Latina, de paróquia em paróquia. Depois, fui morar e trabalhar no Jardim Nordeste, na Zona Leste de São Paulo. Ali que começaram o que mais tarde vieram a se chamar comunidades eclesiais de base [projetos de educação que se espalharam pela América Latina durante os anos 70 e 80].
MC E como era esse trabalho?
MVR Viajei por toda a América Latina, pela África, pela China. Falo inglês, francês, italiano, espanhol e aprendo o que for preciso. Comecei a ficar conhecida por não ter medo de nada. Onde havia uma missão, me chamavam. Dei a volta ao mundo quatro vezes. Também fui morar no interior da Paraíba, onde trabalhava na defesa dos direitos dos pequenos agricultores na luta contra os latifundiários. Fotografava e filmava o trabalho e foi por causa disso que morri pela primeira vez.
MC Como assim?
MVR Morri psicologicamente. Naquela época, os fazendeiros jogavam os bois sobre as plantações dos agricultores para obrigá-los a deixar a terra. Uma noite, fui com minha máquina fotográfica registrar aquilo. Surgiram sete homens com as espingardas apontadas para mim. Os trabalhadores que estavam comigo gritaram: “Vai embora, irmã! Vão matar!”. Subi no morro para falar com os homens, que tremiam mais do que eu. Quando cheguei lá, me pediram a máquina. Dei o filme. Mas morri outras vezes também.

MC Como?
MVR Teve um senhor de engenho que me apontou a arma. Sabe como me safei? Na ditadura havia um ministro que se chamava Eliseu Resende. Disse que era meu parente. Usei esse mesmo argumento para soltar companheiros da prisão. Uma vez quase me afoguei no mar de Itapuã. Noutra, estouraram as rodas do avião, que ficou girando em falso, até parar com o bico em cima do mar no aeroporto do Galeão. A última foi o folclórico infarto em uma Flip. Fui parar no hospital da usina nuclear e retirada de lá de avião. Na maca, ouvia o médico dizer: “Não, por terra não posso liberar que ela não aguenta. Não, helicóptero não, o clima tá péssimo”. Pensei: “Morri, agora vou assistir a tudo”.
MC Você tem medo da morte?
MVR Não tenho medo, mas não me sinto livre para morrer porque sou responsável pelas pessoas ao meu redor.

MC Foi amiga de Fidel Castro?
MVR Conversamos muitíssimo e nos encontramos algumas vezes. Ele queria que a gente ensinasse a Teologia da Libertação, pois continuaram a ser um povo católico. E assim fiquei indo e vindo de Cuba por dez anos, nas décadas de 80 e 90. Viajei o mundo todo em missões. No México, por exemplo, tomei uma bebedeira de mezcal, em uma festa nos anos 70, que me ensinou que não posso com nada fermentado. Era o primeiro ano de ocupação de uma finca por trabalhadores rurais e eu era a convidada de honra. A comemoração era beber e seria uma desfeita recusar.
MC Já usou algum tipo de droga?
MVR Em 1969, estava trabalhando com um padre beneditino, Augustinho, em uma detenção provisória de menores do Tatuapé (SP). Os meninos eram todos viciados em maconha e aí o Augustinho falou: “Precisamos experimentar para entender o que eles sentem”. Fizemos uma sessão solene. Não senti absolutamente nada.

MC Você já se apaixonou?
MVR Na adolescência, a gente se apaixona e desapaixona fácil. Namorei uns meninos. Mas sou muito seletiva. Se você coloca 200 pessoas na minha frente, sei quem é o cara que pode oferecer algum perigo e não me aproximo.
MC Em algum momento você chegou a questionar sua fé?
MVR Aos 12 anos. Nessa época, entendi que a fé é no mistério. É uma aposta. Não tem como comprovar coisa nenhuma, nem refutar nenhum dos argumentos. Faço a aposta porque para mim é melhor viver com ela. Sou melhor para os outros e para mim mesma se tenho fé. Não fico me remoendo.
MC Já sofreu algum tipo de preconceito por ser freira?
MVR Existe uma exploração do esquisito: “Freira ganha... [referindo-se às manchetes sobre os prêmios que recebeu]. Ou muita gente da imprensa põe: “Ex-freira...”. O pessoal tem o estereótipo da freira como uma pessoa burrinha, que não arranjou marido e foi para o convento.

MC Sofreu algum tipo de violência no campo ou na rua? Para escrever Quarenta Dias você passou 15 dias vagando pelas ruas de Porto Alegre.
MVR Toda cidade esconde aquilo que não quer que os outros vejam. Para escrever a respeito, precisava ir para uma cidade que não conheço. Peguei umas milhas, fui para Porto Alegre e me hospedei na casa das minhas irmãs de lá. Perguntei quais lugares eram perigosos. Foi o meu roteiro. Abordava as pessoas com o argumento que bolei para a personagem [que estava em busca de um rapaz desaparecido]. Dormi no saguão do pronto-socorro, passei noite na porta de igreja fingindo dormir.
MC Estamos vivendo um momento de intolerância religiosa. Como vê os ataques que sofrem os terreiros de candomblé?
MVR É inacreditável. Alguém está ganhando dinheiro tentando eliminar as outras alternativas de fé popular... No fundo, a religião é um esteio para ajudar as pessoas a viver. Convivo com muita gente do candomblé e é uma gente benigna e evangélica no sentido do adjetivo, daquele que vive de acordo com o Evangelho. É uma comunidade.
MC Qual é a sua opinião sobre a legalização do aborto?
MVR Eu me pergunto como é que uma pessoa engravida sem querer nos dias de hoje. É preciso educar as mulheres e os homens para não engravidarem sem querer. Agora existe um problema maior, e mais grave, que é o estupro. Existem tipos de estupro – inclusive o cometido pelo marido. E também não tem cabimento pôr a vida de uma mãe em risco, que pode já ter outros filhos, em benefício de uma criança órfã. Então, sim, sou a favor da lei como ela é.
MC Já teve depressão?
MVR Nunca. Mas, de um ano para cá, estou tomando antidepressivo. Percebi que estava mais difícil dar conta das coisas. Liguei para uma amiga psiquiatra, que resolveu com um remedinho.
MC Do que você tem medo?
MVR [Pausa] De perder a fé nas pessoas e em um mundo melhor.


Entrevista concedida a:Maria Laura Neves, Revista Marie Claire. 01.02.2018

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