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Sommelier de Silêncios, Ricardo Araújo Pereira

     Os animais têm boa imprensa. É muito raro vermos um cão com a seta para baixo, naqueles balanços que os jornais fazem sobre as figuras que estiveram mal na semana, ou um gato criticado no editorial.
    
Não é que os cães e gatos não tenham opiniões estúpidas. eles só não a verbalizam. Um imbecil calado consegue camuflar durante muito tempo tempo sua condição de imbecil. Os meus cães, por exemplo, têm a opinião de que meu gramado fica melhor com buracos. E parece-me que a minha gata considera que seria interessante  saber que aspecto teriam meus olhos se tirados do crânio. 
     Sucede que eles não proferem essas opiniões. Nas fábulas, os animais são ressentidos, altivos, dissimulados, manhosos, vingativos, avarentos, egoístas, velhacos. na vida real são adoráveis. A diferença é que nas fábulas, eles falam.

 
     Certos rústicos deixam-se enganar pela aparente simplicidade do silêncio e são levados a concluir que só há um tipo de silêncio. Não é o meu caso. Eu sou um sommelier de silêncios. Sei ver muito depressa se é um silêncio tenso, ou íntimo, ou embaraçoso, ou tranquilo. Se um casal diz: "A gente já não fala", em princípio, a relação acabou. Mas, quando outro casal diz: " A gente já nem precisa falar", aí a relação está melhor do que nunca.
Porque há muito silêncios diferentes, e é preciso apurar o paladar para eles. 
     Infelizmente, a tecnologia parece apostada em suprir o silêncio. Com o celular, estamos contatáveis em todo lado, a toda hora. Faz falta, aliás, um estudo sobre a influência do telefone no amor. Eu tenho tomado umas notas. De acordo com as minhas observações, o modo como os amantes se relacionam com o telefone define a relação. No início, como é sabido, eles dizem:
     - Desligue você
     - Não, não consigo, desligue você.
     Ao fim de 20 anos de casamento, eles dizem:
     - Não há luz na cozinha, ligue para o eletricista.
     - Por que eu? Ligue você!
     - Ah, não. Ligue você!
     No início há uma luta lânguida para ver quem desliga; no fim há uma luta sangrenta para ver quem liga. No início eles têm horror ao silêncio; no fim sonham com ele. O silêncio tem sido muito mal tratado. E o pior é que a gente tem assistido a tudo em   silêncio.

Transcrito do JC- Recife. 15 setembro 2017 
Imagem: vila do pet.

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