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Mil Dias Em Veneza, Marlena de Blasi




Quando compreendi que era eu, eu mesma, quem tinha de construir a casa com as janelas douradas, pus mãos à obra. Curei dores de amor, aprendi a fazer pão, criei filhos, inventei uma vida que me proporcionava bem-estar. E agora estou escolhendo deixar essa vida para trás. Permito-me recordar meus medos avassaladores quando as crianças eram pequenas, as fases de penúria, as vezes em que pedia aos deuses mais tempo, para ser forte e ter saúde suficiente para cuidar dos meus filhos, para vê-los crescer mais um pouco. Não é isso que as mães solteiras fazem? Temos medo de que alguém mais fortes do que nós leve embora nossos bebês. Temos medo de que alguém julgue gravemente errado o trabalho e as escolhas que fazemos. Já somos exigentes o bastante com nós mesmos. E, mesmo em nossos pontos fortes, os outros apontam nossas falhas. No máximo somos parcialmente boas. Tememos a pobreza e a solidão. Uma Nossa Senhora, com crianças a seus pés. Tememos o câncer de mama. Sentimos os medos dos nossos filhos. Tememos a velocidade com que deixam de ser crianças. Esperem. Por favor, esperem um pouco, acho que agora entendi. Acho que posso fazer melhor. Será que podemos simplesmente repetir o mês passado? Como foi que você fez 13 anos? Como chegou aos 20? É claro, você precisa sair de casa. Sim, eu entendo. Eu te amo, meu filho. Eu te amo, mamãe.
     No começo, falei com mais frequência do que o normal com Lisa e Erich, meus filhos. Eu ligava, e eles me faziam um milhão de perguntas que eu não tinha certeza de como responder, ou então eles ligavam só para saber se eu estava bem, se tinha dúvidas ou coisas desse tipo. Depois de algumas semanas, passamos a nos falar com menos frequência e certa tensão. Durante esse período, eles precisaram falar mais entre si do que comigo, pois precisavam lidar com o choque e talvez com a alegria e com o medo. Lisa me ligava, eu chorava e ela só dizia: “Mãe, eu te amo. ”
      Erich veio me visitar. Levou-me para jantar no Balaban’s e ficou sentado do outro lado da mesa examinando meu rosto com atenção.  Convencido, então, de que pelo menos a minha aparência continuava a mesma, passou um longo tempo sentado bebendo seu vinho sem dizer nada. Finalmente começou com:
     - Espero que você não esteja com medo disso tudo. Vai ser bom para você. – Era uma tática clássica sua: me reconfortar, quando era ele quem estava morrendo de medo de alguma coisa.
     - Não, não estou com medo – falei. - E espero que você também não esteja.
     - Medo? Eu, não. Só preciso reajustar minha bússola. Você e a minha casa sempre estiveram no mesmo lugar – disse ele.
     - E ainda estaremos. Só que agora a sai casa e eu vamos estar em Veneza – respondi.
     Eu conhecia a diferença entre ir para a universidade sabendo que sua casa ficava a poucas centenas de quilômetros de distância e ver a mãe desmontar essa casa e ir morar na Europa. Agora a casa dele estaria a 10 mil quilômetros e não seria acessível nos fins de semana prolongados. E havia também aquela pessoa chamada Fernando. O acontecimento foi bem menos dramático para minha filha, pois já fazia muitos anos que ela morava em Boston, onde estava muito envolvida com sua vida afetiva, seus estudos, seu trabalho. Desejei que meus filhos pudessem se sentir parte desse meu futuro, mas aquilo não estava acontecendo a nós três juntos, como a maioria dos eventos d de nossa vida até então. Dessa vez, algo estava acontecendo apenas comigo. Parte de mim sabia que nós éramos um time antigo, que mesmo um oceano seria capaz de separar. Outra parte sabia que a infância deles estava acabando e que, de um jeito estranho, a minha estava começando.
     As partes realmente preciosas da minha vida são portáteis, não dependem de geografia. Por que eu não deveria ir morar às margens de uma lagoa no Adriático comum estranho de olhos cor de mirtilo sem deixar nenhum rastro de migalhas de biscotti  para achar o caminho de volta? Minha casa, meu carro chique, até mesmo o meu país natal não eram, por definição, eu. Meu santuário, meu eu sentimental eram viajantes experientes. E eles iriam aonde quer que eu fosse.

Mil dias em Veneza, Marlena de Blasi, tradução Fernanda Abreu . Rio de Janeiro, Sextante, 2010, pags. 41-43

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