Pular para o conteúdo principal

Esta Bagagem é Sua, Senhora? Fernanda Takai.

     
Tá. Em tempos de terrorismo e restrição no transporte de substâncias líquidas na bagagem de mão em vôos internacionais, eu fiz bobagem. Era por uma boa causa. Claro, a nossa própria causa.  Durante uma viagem a trabalho, num trecho entre Inglaterra e Portugal , nosso pequeno grupo intercambiou alguns volumes pra distribuir melhor o peso, o limite de bagagem e tal...Eu teria de carregar uma guitarra pesada, então troquei pela malinha de mão de outro músico. Ainda perguntei para ele se tava tudo nos conformes. Não vai me fazer ficar presa aqui não, né? Risadas pra lá. Conversinhas pra cá. 
     E a fila enorme ia se acumulando para passar pelo raio X do embarque. Vários funcionários da segurança que só poderíamos levar um volume como bagagem de mão. Atenção para os líquidos! Atenção para os objetos perigosos! ferramentas não podem ir na bagagem de mão! Atenção isso e aquilo. Não, senhor. Não pode levar o computador portátil e a mala pequena. Tem de despachar a mala ou fazer o seu computador caber nela. Mas olha a fila! Sinto muito, senhor. Quem tem viajado ao exterior sabe quão sem graça são esses procedimentos todos. Tira sapato. Tira cinto. Tira anel.Tira chapéu. Epa! Strip-tease pode?
     Eu geralmente corro pro embarque o mais rápido possível e fui antes de todos.
     - O próximo, por favor.
     - Olá!
     - Coloque sua mala aqui, senhora.
    
     E a malinha do meu amigo ia passando lentamente pela máquina de raio X...
     - Senhora, por favor. Essa mala é sua?
     Pra não ter de explicar que éramos um grupo e aquela coisa toda, respondi
     -Sim
     -A senhora é responsável por esta bagagem?
     -Sim - já disse sem muita convicção.
     -Temos que abri-la.
     -Claro.
     -Abra, por favor, aqui deste lado do balcão.
     -Humm, como é que se abre essa mala? - pensei.
     -Senhora... algum problema?
     Obviamente meu amigo, dono da mala, ainda estava atrás na fila, porque tinha ido tomar mais um cafezinho naquele dia frio. Sorte que não tinha cadeado.
     - Consegui!
     Póin! Apareceram logo duas cuecas do tipo grande por cima de toda a roupa. O moço do raio X me perguntou de novo:
     -Esta bagagem é sua?
    Olhei para os lados para ver se encontrava meu marido e jogar pra ele a culpa.Claro, por que não pensei nisso antes?
    Mas ele também estava na fila do outro raio X abrindo o estojo de sua guitarra ... e parecia discutir com a pessoa que estava fazendo a checagem.
     -É sim -  confirmei, meio sem graça.
     Aí com sua luvinhas brancas remexeu a bagagem e encontrou um spray cheio de creme de barbear. Questionou-me com uma expressão blasé no rosto:
     -Senhora, este creme de barbear é seu?
     -É.
     -A senhora não pode levá-lo, está fora dos limites de 100 ml.
     -Ok, pode ficar com ele,me desculpe...
     Que coisa. O jeito era deixar ele pensar que eu uso cuecas e creme de barbear.                 Ninguém me conhecia ali mesmo... Até que o moço me perguntou:
      -E este equipamento aqui?
      Putz, o que era aquilo? Uma interfacce de áudio, um transcodificador?
      Aí vi que precisava explicar tudo direitinho. E a fila aumentando...
    - Moço, essa bagagem é do meu amigo. Nós somos de uma banda do Brasil.Ele está carregando minha guitarra pesada, que troquei com ele porque só podemos levar um volume cada. Olha, ele é aquele de gorro vermelho lá no fim de terceira fila.
     -Espere aqui então.
    Quando chegou a vez dele, contou a mesma história ao moço do raio X e explicou pra que servia aquele aparelho.
   Aí para completar a sessão, o meu marido teve uma chavinha allen ( de  três centímetros e que fica presa à guitarra) apreendida como ferramenta perigosa! Menos mal. Chavinhas como aquela ele tem aos montes em casa. Fomos liberados, enfim. 
     Ufa! Agora é só ir pro portão de embarque.
     -Senhores, por aqui! Desinfecção de sapatos...

     Por isso a vaca ficou louca.

In Takai, Fernanda Nunca subestime uma mulherzinha,1ª ed.São Paulo:Panda Books, 2007
p.60-64

Nota: a postagem do texto foi autorizada pela autora, a quem o blog agradece.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.