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A Volta, Marcos Cirano

Trinta e sete anos depois, quando voltei pela primeira vez a minha cidade, só então descobri que aquela já não era mais a minha cidade. De tudo o que ali deixei, quase nada mais existia. As pessoas, também quase todas, não eram aquelas mesmas pessoas com as quais eu vivera sonhos e fantasias, vitórias e derrotas, tristezas e glórias... E, foi aí que me abateu uma gelada melancolia... Não é que não havia grandes explosões de vida naquela cidade que agora eu encontrava. Nem que eu quisesse que tudo tivesse permanecido estático, exatamente igual como nos tempos de quando ali vivi. Não é isso!... É que eu gostaria que, pelo menos, algumas daquelas coisas que várias gerações passadas construíram (e foi com tanto sacrifício!) existissem para sempre – ou para quase sempre, como se estivessem ali a dizer:
- Olhem, foi assim que tudo começou!...
E o que hoje eu mais queria de volta da minha velha cidade?... Simples! Primeiro, eu gostaria que devolvessem o charmoso prédio do cinema, onde agora funciona uma igreja e a fachada anuncia, de longe, um prédio de duvidoso gosto arquitetônico. Queria a recriação (e por que não?) do grupo Jazz Band Regional que, num salão qualquer, voltaria animar bailes semanais para os maiores de 65 anos que por lá aparecessem... Claro que não precisava ser bailes de gala, como os bailes de formatura da minha juventude, aos quais só era permitida a entrada de rapazes com paletó e gravata e as moças exibiam grandes torres de cabelo e laquê... Poderia ser coisa simples. E, se não mais existisse público para tais bailes, pelo meu WhatsApp eu convidaria alguns amigos da redondeza com quem nunca perdi o contato e...
...pronto: rolava a festa!
Sobre as outras coisas que eu queria de volta, também não vejo nenhum absurdo nelas. Por exemplo: Eu queria de volta o coreto e os bancos da Praça da Matriz onde a gente namorava e comia pipocas (afinal, o que custa isso?!). Eu queria que a estação de trem continuasse sendo estação de trem, não uma loja de artesanato. Que ainda existisse o trem. Que o Hotel de Dona Laura continuasse vendendo doce de leite – mesmo sem existir mais Dona Laura com aquela sua risada de maestrina. Que as pessoas da cidade (todas) sempre falassem bom dia, boa tarde, boa noite... Queria, também, que o rio que dividia a cidade em duas não tivesse virado um imenso esgoto. Que existisse uma sorveteria com sorvetes de casquinhos. Que cantoria de viola não tivesse virado coisa brega e que, estes sim: os coronéis da política tivessem sumido para sempre.
Tudo bem que as cadeiras nas calçadas não existem há décadas e dificilmente voltarão – até porque, nesse século 21, as cadeiras nas calçadas são o feicibuqui. Mas, eu queria que, se possível, voltassem as grandes procissões que aconteciam em datas comemorativas. Não porque eu tenha devoção a qualquer santo: é porque eu sempre me emocionei com aqueles ajuntamentos de pessoas que seguiam andando lentamente, olhando umas para as outras. Poderiam até ser mentirosos todos aqueles olhares (ou quase todos), mas a impressão que dava era a de que havia uma crença num rumo a seguir... Outra coisa que eu também queria era que, numa próxima volta, eu já encontrasse a cidade como eu queria que ela estivesse agora e nunca mais eu sentisse por toda parte aquele cheirinho bom de balas de framboesa da porta de cinemas.

Nota: o texto acima foi copiado da postagem do autor na sua página no facebook. O jornalista Marcos Cirano autorizou sua publicação no blog e gentilmente cedeu as imagens.

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