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Depois do Terceiro Uísque, Aluízio Falcão

   
Depois do terceiro uísque, qualquer paulista normal, com idade superior a trinta anos, passa a gostar de baladas de Roberto Carlos. A conclusão é também válida para acadêmicos de PUC/USP/UNICAMP, sociólogas descasadas, críticos pós modernos, jornalistas em geral.Dá-se, nesse momento, que o precioso líquido escocês, queimando nas fornalhas do metabolismo, ilumina uma zona escura de cérebro, onde secretamente habita nossa porção latino-brega. Afloram, de repente, canções baratas e adormecidas no inconsciente sob o véu de escrúpulos estéticos. Depois do terceiro uísque, ninguém é de ferro. Até o governador Mário Covas seria capaz de cantar, em lágrimas, "Os botões da blusa". 
     Não me perguntem detalhes da metodologia que usei par chegar a tais revelações. Este não é um texto científico e eu sou pago para escrevinhar amenidades. Não tenho comigo as planilhas. Mas, se a tanto for obrigado, posso exibi-las diante de um tribunal técnico. O máximo que faço hoje é contar um, dentre centenas de testes realizados. Foi no Buca Del Pazzo, faz tempo, em noite de garoa e boemia.
     Usei como cobaias dois conhecidos jornalistas da praça, ambos poetas. Intelectuais, portanto, ou pelo menos assim identificados nos manifestos que assinam em campanhas eleitorais.
     Iniciei o teste provocativamente, elogiando Roberto Carlos e cantarolando aquele clássico erótico-sentimental que diz: "Nos lençóis macios da cama/ amantes se dão/ travesseiros soltos/ roupas pelo chão...", então nas paradas de sucesso do rádio popular. Como todos os indivíduos pesquisados, esses dois, ainda na primeira dose, protestaram com veemência. Roberto Carlos foi acusado de melodista repetitivo, rouxinol da Votorantim, porta-voz da classe média alienada, seresteiro de motel e outras jóias do nosso cancioneiro crítico. Um dos meus entrevistados usou, com certo espírito, a famosa frase de Tom Jobim: "Roberto Carlos é o melhor compositor de música ruim que existe".
     Rimos. Bebemos. Mudamos de assunto. Aparentemente. Digo  aparentemente porque, no meio da segunda dose, comecei a contar uma estória que me levaria, por vias transversas, ao objetivo central da pesquisa.
     "Pablo Neruda foi um poeta superior", comentei distraidamente, obtendo a óbvia concordância dos dois. Prossegui: ainda ontem achei num sebo do centro da cidade um livrinho raro editado em vários idiomas, escrito por Matilde, a primeira mulher do poeta. Era uma edição em italiano: Ricordanza della mia gioventú. Memórias de mocidade, quando ela conheceu Neruda em Paris, ambos estudantes bolsistas, recém-chegados do Chile.
     Minhas duas cobaias arregalaram os bugalhos. Sorviam prazerosamente cada palavra do meu relato, junto com os restos da segunda dose. Aquilo sim era um bom assunto, disseram. Assunto de estilo, como convém a gente de nossa estampa. Continuei a estória.
     Matilde e Neruda conheceram-se num bistrô do Quartier Latin. Tinham dezoito anos, eram belos, pobres e apaixonados. Naquela remota madrugada em Paris, diante de uma garrafa de Beujolois quase vazia, o jovem Neruda perguntou: "Vamos casar, Matilde?". Ela sorriu alvoroçada: sim, Pablo, vamos casar. Ainda hoje, ainda nesta noite. Façamos a festa. O poeta quis comemorar e contou míseros francos disponíveis. Talvez dessem para mais uma garrafa de vinho, talvez não. Mesmo assim chamou o garçom, pediu ousadamente outra garrafa. E naquele momento escreveu no guardanapo de papel um verso que Matilde guardou por toda a vida.  Um verso que o livrinho dela reproduzia em fac-símile, 52 anos depois, como documento daquele arrebatamento juvenil:"Matilde, nós somos a festa e a dose atrevida. a) Pablo".
     Meus dois ouvintes, terminando a terceira e engatando a quarta dose, explodiram de entusiasmo. Puseram-se a elogiar os poemas de amor de Pablo Neruda, especialmente esse verso inédito que repetiam em portunhol:"Nosotros somos la fiesta...".
     Aí veio o anticlímax. Eu disse; "Pois bem, saibam que essa estória é inverídica. Acabo de inventá-la. Nunca houve esse pobre amor em Paris, não existe o tal livrinho de Matilde e o poeta Neruda jamais escreveu esse verso, que não passa de um trecho da música O Gosto de Tudo de Roberto Carlos". E cantei a balada inteira.
     Quase fui apedrejado com o gelo que restava no balde. E comprovei naquela noite quão relativo é o rigor estético da intelectuália, nesse terceiro mundo.
Depois do terceiro uísque.

FALCÃO, Aluízio. Crônicas da vida boêmia, 1 ed. São Paulo:Ateliê Editorial,1998 p.23-26

Nota 1: o blog manteve a grafia original.
Nota 2: a postagem da crônica foi gentilmente autorizada pelo autor.

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