Minha mãe teve sempre para mim grandes desígnios. Quais eles
fossem não sei. Nem ela própria o saberia. Era uma força que vinha de dentro
dela, uma obstinação. Ela queria grandes
coisas para mim, um destino, talvez um milagre. Transmitiu-me desde pequeno
essa crença em algo de superior que me esperava ou que eu devia cumprir. Talvez
por isso vivi sempre uma tensão extrema, creio que muitas vezes à beira da
ruptura. Por vezes desorganizava-se, adoecia. Ela não descansava: estava sempre
interiormente orientada para um fim. E nunca satisfeita. Nem consigo nem com os outros. Não sei ao
certo o que ela exigia. Nem talvez ela própria soubesse. Sei que me incitava.
Era uma fé que quase me obrigava a corresponder, sob pena de eu próprio me
considerar um fraco. Não que me estimulasse a ser o melhor, nem sequer a
competir. O que ela queria é que eu fosse diferente: o outro, o único. Por ser seu filho. O seu. Sublinhado. Por isso tinha que deixar na vida um sinal, um
marco, a marca. Ou cumprir a missão que nenhum de nós sabia ao certo qual fosse.
Tão grande era
sua confiança que de certo modo ela acabou por me transmitir a convicção de ter
nascido para um desígnio. Não era fácil. Eu tinha de ser diferente, de pensar
de outro modo, de encontrar a palavra, o gesto, a gesta. Era fazer ou ser como nunca
ninguém. Um encargo para ela, por assim dizer um cargo, algo que ela não podia
nunca descuidar. E se acaso as coisas não corriam como queria, se acaso eu não
correspondesse, a culpa não era minha nem estava na ideia que de mim ela tinha construído, a culpa
vinha de fora, da incompreensão dos outros, da pequenez, da inveja e da incapacidade
de ver o óbvio: que eu era diferente e estava destinado a fazer o nunca feito.
Ora isso acabava
por ter consequências: à força de representar esse papel não sei se não acabei
por me tornar o personagem por ela imaginado. Cada um, disse não sei quem, talvez
André Gide, é sempre aquilo que imagina que é. Não sei se não sou, em parte,
quem a minha mãe engendrou que eu fosse. O actor e o seu duplo, a máscara, a
persona, o heterónimo.
Havia regras. Por
exemplo: não acusar ninguém, nem permitir nunca que outros pagassem por mim. O
que me conduzia ao exagero de ser eu a pagar pelos outros. Alguém cometia uma
falta e a classe era responsabilizada em bloco. Eu levantava-me e dizia; fui
eu.
Era um
comportamento ditado pela alta ideia que aminha mãe fazia de mim e que ela
depois interpretava como mais um sinal que não vinha senão confirmar a sua
íntima convicção.
Assim se foi
criando um círculo vicioso em que as exigências e os padrões de comportamento
foram sendo sempre cada vez mais elevados. Ela não se importava que eu não
tivesse aas melhores notas. Mas não admitia, não concebia sequer que eu não
fosse o mais corajoso, o mais capaz e responder quando todos tinham medo, ou
mesmo, em certas circunstâncias, o único, aquele que tinha de o fazer
porque para isso de certo modo tinha
nascido. A inabalável convicção de minha
mãe tornou-se a razão de ser da sua vida. E transmitiu-se, com excepção do meu pai, ao resto da família, aos próprios amigos,
senão mesmo aos inimigos. Tive muitas vezes a impressão de que me exigiam o que
não estavam dispostos a fazer e o que não esperavam de mais ninguém. Por isso,
desde pequeno, vivi sempre, de certo modo, junto ao risco. A minha mãe não
concebia que eu não vivesse intensa e perigosamente. Quando muito mais tarde eu
fui preso por razões políticas, ela não
entrou em pânico, nem sequer ficou aflita. Portou-se como se
estivesse à espera e como se aquela
prova fosse até certo ponto, desejável e desejada. Ou simplesmente inevitável.
A sua principal preocupação foi saber se eu aguentaria. Quando lhe disseram que
sim ficou satisfeita. Mas como quem acha que nem poderia ser de outro modo. Para ela era como se tudo
estivesse escrito.
Uma tal exigência
provocava tensões e tinha uma lógica irrefragável: para ser o que ela queria
que fosse eu teria que me rebelar conta sua tendência para capitanear a minha vida. Foi a sua grande e insuportável
contrariedade: ela controlou quase sempre toda a gente, mas a mim não. Transmitiu-me
confiança e energia suficientes para lhe escapar. Mas não se confunda essa
vontade de comando com recusa ou frieza. A minha mãe era terna. E tínhamos grandes
ritos de afectividade. Eu nunca adormecia sem a minha mãe me vir trilhar a
roupa e dar um beijo. Era um momento bom e único e insubstituível. Para ela eu
corria sempre que sentia a tal bicada na nuca o arrepio, a sensação de morte
iminente. Ela incitava-me à guerra. Mas era a paz. Pelo menos naquele tempo
marcado pelos ritmos lentos das estações, da suas tarefas, das suas doenças,
dos seus ritos e dos seus jogos.
Tudo girava à
volta da casa à volta da avó Beatriz e de minha mãe. De certo modo havia uma
luta pelo poder, que talvez fosse, também, por mim. A minha mãe exigia, a minha
avó protegia. Eu sabia que junto dela, fizesse o que fizesse, estaria sempre
perdoado.
A minha irmã era
ainda muito pequena. E o meu pai passava a semana quase toda fora. Às vezes
mesmo quando estava, era como se não estivesse completamente. Há pessoas que estão
sempre ausentes mesmo quando fisicamente estão ali. O meu pai era um pouco assim: partir frequentemente
para não sei onde, talvez para outro tempo, talvez para outro espaço, o das
serras da Beira Baixa, atrás de perdizes
impossíveis de caçar. Um pouco como na poesia, onde, havia de o aprender
depois, se anda sempre atrás de um verso que não há.
Naquele tempo as
relações entre eles eram instáveis, ora muito boas ora muito más. Às vezes o
meu pai ia uma temporada de castigo para o quarto do fundo. Normalmente por ciúmes
de minha mãe, provocados por histórias que lhe vinham contar. Não que ele fosse
propriamente um corredor de saias. Mas era um homem atraente, que agradava às
mulheres. Talvez não tivesse muita paciência para conquistas. Era mais de sua
natureza deixar-se conquistar.
Mas apesar das tensões,
das zangas, dos ciúmes, havia entre eles uma relação forte, algo que se lhes
impunha, talvez até contra a vontade de um e de outro. Seria a atracção dos
contrários, porque eram diferentes em quase tudo, no físico ( minha mãe
pequenina, meu pai bastante alto) , no temperamento (contemplativo, o do meu
pai, frenético, o de minha mãe), na atitude (empreendedora, profundamente
burguesa, a e minha mãe, desprendida, senhorial, a do meu pai). Casaram-se à
revelia dos meus avós, quase clandestinamente, apadrinhados pelo Marquês. Só
depois de eu nascer se reconciliaram com as famílias. Fui assim o fruto de uma
atracção conflitual que havia de tornar-se, com o tempo, numa cumplicidade mais
forte do que as diferenças e as próprias desavenças.
Mas naquele tempo
havia, por vezes, grandes cenas. Minha mãe e minha avó juntam-se e pregavam
sermões ao meu pai. Eu não percebia porquê, creio que ele também não. Talvez
nem elas próprias ao certo percebessem. Falavam, falavam e o meu pai olhando
pata mim, imitava com a mão o movimento de uma manivela. A fúria dos Farias,
dizia minha avó. Devo confessar que compreendia o meu pai. Achava até que ele
devia explodir mais vezes, porque sempre que tal acontecia restabelecia- se um
equilíbrio de forças e havia um período de paz dentro de casa.
Era uma cena
curiosa de se ver. Elas falavam, falavam. Quando menos se esperava o meu pai
dava um berro e um salto depois ia buscar uma mala, metia roupa lá dentro e
atirava tudo ao ar. Por vezes, se a fúria fosse mais profunda,
armava a espingarda, a minha mãe, a minha avó e as criadas gritavam e fugiam,
eu assistia, meio assustado, meio divertido, para não dizer entusiasmado. O meu
pai metia dois cartuchos na espingarda, corria para o jardim e disparava dois tiros para o ar. Depois começava a rir,
até as lágrimas. Fazia-me uma festa na cabeça, quase tão rara com as que fazia
ao cão, e eu já sabia que, a seguir era a paz.
Nessa noite já ele não dormia no quarto do fundo. E no dia seguinte até
a minha avó lhe falaria a sorrir, amenamente, quase com intimidade, o que
só acontecia depois das grandes
tempestades.
Um dia não me
contive.
- Porque é que o
pai dá dois tiros para o ar?
- Eu não dou dois
tiros para o ar.
- Então contra
quem é?
- Há perguntas
que não se fazem – disse.
E soprou o fumo
que saía ainda nos canos da espingarda.
Imagem: página do autor no facebook
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.