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História, Marques Rebelo

                                     
   Dona Rosinha que era a nossa professora, nervosa, facilmente excitável, eternamente de preto, só tinha uma frase para definir o Tutuca: este pequeno parece que engoliu o capeta.  O capeta era o diabo e Dona Rosinha, a moça mais religiosa daquela cidadezinha, de maneira que a definição era altamente séria.
     A sua religião, porém, era muito engraçada. Missa que não fosse das cinco horas não era missa para ela. Um católico fervoroso deve ter obrigação de acordar cedo,dizia batendo com os nós dos dedos na vasta mesa de pinho.
     Tinha preferências escandalosas por determinados santos. Por exemplo: o primeiro aluno da aula, que por muito tempo foi o Pedrinho,sobrinho do coletor federal, trazia sempre no peito, pendurada numa fita azul, uma medalha que era Santo Antônio, enquanto que o segundo recebia uma medalha muito maior que era São Geraldo. Porque na sua opinião Santo Antônio valia muito mais que São Geraldo, razão mais ou menos, de dois São Geraldo para cada Santo Antônio. Também a gurizada não era assim tão boba, que não soubesse fazer pilhérias à custa de tais predileções.  E a gente dizia, de boca pequena, com uma ironia bem pouco infantil, que Dona Rosinha gostava de Santo Antônio porque Santo Antônio era casamenteiro.
    Era solteira, mas tinha uma vontade indisfarçável de casar. Então quando ela passava para fazer em casa uma porção de contas e um verbo todo para copiar, a gente, num assomo de raiva coletiva, corria  à igreja do Rosário e fazia ingênuas promessas a Nossa Senhora do Carmo, rogando à santa  que Dona Rosinha morresse solteira.
     Mas - para que negar? - era uma bela alma e quando nós tínhamos exames com o inspetor, que era um sujeito alto, de óculos e medonho de mau, ela soprava tudo porque a gente não sabia nada. 
     No fim do ano, dava sempre uma festa cheia de recitativos e comediazinhas que na terra chamavam de teatrinho, talvez porque, para sua realização, fosse praxe se armar no salão da Câmara Municipal, que era gentilmente cedido, um pequeno palco, enfeitado com velhas colchas bordadas e variadíssimas flores de papel. Chorava sinceramente quando chegavam as férias e enchia a todos de prêmios - medalhas de santos, livros de histórias e copos dourados com palavras douradas: Amizade, Felicidade...
     Uma vez, saiu do sério e deu ao Juquinha da Miranda, que fizera um exame muito elogiado pelo inspetor, um estojo de courinho cm réguas, lápis, canetas, borrachas e um copo complicado de alumínio para beber água. 
     Tinha uma irmã chamada Dona Marta, muito mais moça do que ela, quinze anos, uma criança ainda, uns olhos azuis que todo o colégio namorava. Era muito fraca, muito leve, leve como uma pena, e parece que foi de tão leve que ela subiu ao céu.
     Uma manhã, quando nós chegamos para a aula, o colégio estava fechado. A Mariana velha empregada de Dona Rosinha, disse com olhos vermelhos de tanto chorar, que naquele dia não haveria aula porque Dona Marta tinha morrido, só porque fizera muita força para puxar uma mala. O médico, que era Dr. Jorge, falou na farmácia de Seu Caetano - e o Nequinho ouviu - que ela tinha morrido do coração.
     Nós fomos todos ao enterro, roupa branca, sapatos brancos, tudo branco, em filas, na frente do caixão, com flores na mão e um sorriso satisfeito nos lábios.  No cemitério que ficava no alto dum morro, por trás da igreja da Boa Morte, Seu Juca tabelião, que era poeta, falou, falou e falou. Nós não compreendíamos nada. Dona Zulmira, vizinha de Dona Rosinha, chorando muito desfiava um rosário, agasalhava, com o xale de croché, o peito cavado, que o vento de inverno soprava fino e perigoso entre os ciprestes compactos. Logo que Seu Juca acabou começaram  os coveiros a encher a cova de terra. pouco tempo ouvimos aquele barulho surdo, porque Dona  Zulmira tirou-nos dali dizendo "que era um espetáculo muito triste". 
     Dona Rosinha ficou muito acabada, apareceu-lhe, dum dia para o outro, uma larga faixa de cabelos brancos, e nos deu oito dias de férias - oito dias de férias! - naquele bonito mês de maio, em que as noites eram tão claras, que a gente nem podia brincar de esconder!
     - Por que - dizia o Joãozinho, o pior menino da aula - não morreu Seu Tatão também?
     Seu Tatão era o pai de Dona Rosinha. Fumava cachimbo, tinha uma voz grossa que amedrontava, e sempre que acabavam as aulas a gente saía aos berros, pelo Beco 13 de Maio, ele agarrava a Dorinha, que era loura mesmo como Dona Marta, com olhos azuis como Dona Marta, tão leve como Dona Marta, e lhe fazia, com os olhos cheios de lágrimas, uma porção de festas no rosto.

(Marques Rebelo,Contos reunidos,Liv. José Olímpio 1977)

Charge de Marques Rebelo, por Osvalter

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