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Fatita de Matos, a amante infeliz. José Eduardo Agualusa

   
                                                            
Na ampla sala de visitas da casa  de Fatita de Matos, Mana Fatita, como é mais conhecida, na Restinga do Lobito há cinco retratos a óleo, com um metro por 1,5 metro. Em todos eles Fatita de Matos está sentada  no mesmo cadeirão de verga, quase em idêntica posição, com um livro no regaço. A primeira tela foi pintada em 1946. Fatita tem vinte anos, ainda é virgem, e está a ler Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Na segunda tem trinta anos, quatro filhos ilegítimos, e está a ler Amor de Perdição. Na terceira  tem quarenta anos, veste de preto pela morte de filho mais novo, e está a ler Amor de perdição. Na quarta tela tem cinquenta anos, sete netos, e continua a ler Amor de Perdição. Finalmente, na quinta tela, tem sessenta anos, 12 netos, três bisnetos, e está a ler Cem anos de Solidão de Gabriel García Márquez. Todas as telas são de sua autoria.
     - Faltam duas. - Digo-lhe. - Deixou de pintar?
     Fatita sorrí. Tem um sorriso jovem. O sorriso é o mesmo nas cinco telas. Não envelheceu:
     -Não, não deixei de pintar, não gosto é de pintar velhas. 
     Cala-se. A filha mais velha, a doutora Pitanga de  Matos, interrompe o silêncio. Diz que a mãe sofreu muito por causa de Faustino manso. Fala sobre o amor da mãe como se o tivesse sofrido ela própria. Fatita de Matos limita-se a sorrir, vez por outra , um pouco trocista, ou, ao contrário, a confirmar com a cabeça de olhos baixos.

(Em: As Mulheres do meu pai, José Eduardo Agualusa, Ed.Língua Geral,Rio de Janeiro, 2012, pags.71e 72)

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