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Na Área, Armando Nogueira



Clarice Lispector: Há uma semana, não encontro no Rio uma pessoa amiga que não me pergunte: “Então, quando é que você vai aceitar o desafio da Clarice Lispector”?
(Permita, leitor, explicar que eu tinha pedido, daqui, uma crônica de Clarice Lispector sobre futebol. Ela escreveu, escreveu uma crônica admirável; mas, num impulso de terna vingança, Clarice me multou: desafiou-me a perder o pudor e escrever sobre a vida).

Agora, os cobradores de Clarice estão à minha porta, carinhosamente, exigindo a resposta, mas com uma impaciência que me angustia como a véspera de um grande jogo.
Que dizer de um jogo que ainda não terminou?

E mesmo quando termine, Clarice, o match de minha vida não justificará sequer resenha: é match-treino, sem placar, sem juiz, nem multidão. Por tudo! Que está bom assim, embora melhor se fosse uma pelada – mil meninos jogando a minha vida, alheios ao vento que às vezes persegue tanto o time da gente.

Jamais seria um bom depoimento de minha própria vida: jogo muito mal, sofro a imprecisão de meus chutes. Tenho medo e respeito muito o julgamento da plateia. Embora também já tenha tido vergonha da multidão. Eu te conto, Clarice: era um jogo de grande importância, no Maracanã. O ídolo errou o primeiro passe, errou o segundo, o terceiro. Deram-lhe uma vaia. O ídolo lutava, dignamente, mas seu esforço era vão, a bola de ferro não lhe saía dos pés. A multidão já passava da reprovação ao deboche; e o ídolo, ali, firme, correndo entre dois abismos – humilhação e fadiga. Chamaram-no de venal; ele chorou em campo.

Depois do jogo, a um canto do vestiário, ele me confessava, ainda em lágrimas:
- Armando, eu sei que joguei muito mal. Mas eu não tinha cabeça para pensar. Essa gente não sabe, mas eu vim jogar, deixando minha filha, de cinco anos em casa, com minha mulher doente e uma irmã de minha mulher, louca, trancada no quarto. Mas, louca de hospício. Louca de passar o dia jurando que ainda vai estrangular a minha filha. E eu no campo, só pensava nisso: meu Deus, será que ela não está estrangulando a minha filha?

Nesse dia, eu descobri que nem sempre a voz do povo é a voz de Deus e que às vezes a multidão é capaz até de torcer pelo estrangulamento de uma criança.

match de minha vida, querida Clarice, tem sido um sofrido aprendizado de todos os sentimentos que murcham e florescem num jogo de futebol: o amor, o medo, o ódio, a inveja, a coragem ali estão, revestindo ou informando cada gesto da bola, cuja meta é sempre o coração – para viver uma grande alegria ou para morrer de infarto.

Infelizmente, jamais conquistei um lugar de jogador nesse misterioso torneio que acompanho, há quarenta anos, como simples espectador. Tentei ser goleiro. Queria sentir o único pedaço de campo em que a grama verde não vinga jamais. Cheguei a mentir, enfiando joelheiras, um boné na cabeça e dizendo aos outros meninos que era o Batatais. Deve ter me ficado da experiência uma visão pessimista do campo. Mas, pelo menos duas lições aprendi com dois goleiros: com Evutchenko, “que a vida não é só atacar, é também vigiar os menores movimentos do adversário e conhecer suas artimanhas”; e com Albert Camus que o futebol ensina tudo sobre a moral dos homens.

Por fim, Clarice, o match de minha vida não registra um instante sequer de plena felicidade, embora alguns espectadores o vejam como um alegre amistoso de portões abertos. Marca-me, cerrado, um sentimento de culpa, a dividir comigo as bolas de sabão de cada gol perdido.

Se não deploro, também não tenho o que festejar no match da minha vida: o grito que glorifica o goleador é o mesmo que mortifica o goleiro.
Por isso, não vejo na vitória mais verdade que na derrota.

match de minha vida, Clarice, está por ai, rolando numa bola que já não é de meia, nem de gude: bola de tantos sonhos perdidos pela linha de fundo – círculo, inspiração do sol, forma perfeita, esfera de fogo queimando, às vezes, a grama dos meus campos.

Que o match da minha vida possa ao menos terminar em paz – empate.


(Jornal do Brasil, 8.4.1968)
O blog manteve a grafia original

Leia também o texto de Clarice Lispector ao qual Armando Nogueira se refere.

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