Já escrevi sobre isso: mas a coisa me impressionou, e além do mais ainda não recebi os jornais, são seis e quarenta, e Chico Brito combinou de passar às 8 horas para irmos às enxovas. Se começar a procurar assunto, acabo perdendo a pescaria. E acontece que há pouco , quando acordei,eu estava sonhando com isso. Via um homem de avental e touca, como se fosse um sacerdote, mas um sacerdote em paramentos brancos de padeiro. E ele erguia à luz um pequeno pão branco. A luz era a mesma de meu quarto, um raio de sol fraco e louro: e o pequeno pão brilhava como hóstia e o homem dizia: “É puro, é puro.”
O jornal deu esse caso do padeiro de Brás de
Pina que foi autuado por estar fabricando pão com farinha de trigo pura.
Entende-se que a Prefeitura tem razão. Temos pouco trigo – precisamos misturá-lo.
O padeiro será punido, mas que ele ouça esse canto matinal em seu favor.
Glória a ti,
padeiro de Brás de Pina, padeiro do pão puro.
Entre o falso
leite, a falsa arte, a falsa crítica de arte, o falso dinheiro do governo, a
falsa palavra do político; entre a falsa mulher, a falsa meia de nylon, a falsa
campanha e a falsa democracia – glória a ti. Mergulhamos no frenesi das falsificações;
nossos panos são de falsos tecidos, os sapatos de falso couro, as garrafas de
falsa bebida, as palavras de falsa moral. Há orquestras tocando falsas músicas
e oradores com voz embargada, pela falsa emoção; e o chefe da Polícia resolve
punir falsos crimes. Os partidos fazem falsa coalizão ou se colocam em falsa
oposição ou hipotecam falso apoio; e todos comem a falsa manteiga, bebem água
de falsa pureza e tomam falsos banhos sem água. De tudo nos queixamos aos falsos
amigos; e todos nos fazem falsas promessas, e nos oferecemos falsos banquetes;
quando tudo piora, o povo nas ruas promove falsos distúrbios, quebrando falsos
artigos de falsos comerciantes.
Tú, só tu, fazes o puro pão. Às escondidas, nesta cidade pecaminosa; contra as posturas municipais e contra os costumes; é aí, na penumbra de Brás de Pina, que formas a tua massa pura e a levas ao forno de verdadeiro fogo do ideal, ao fogo do teu coração. Glória a ti, verdadeiro padeiro, último preparador da branca hóstia da verdade eterna e terrena do pão dos homens: glória a ti.
Sim, glória ao padeiro que acredita no pão. Não acreditam na
paz os homens que a fazem; até a guerra a fizeram sem acreditar. Glória a ti,
padeiro que fazes pão.
(In:Braga, Rubem,200 crônicas escolhidas - Ed.Record)
Que lindo! Eu não conhecia!!!
ResponderExcluirOlá Neto,
ResponderExcluirFico feliz com sua visita. Rubem Braga, me impressiona. Um crônica por dia duarante anos! Talento de usar as palavras, com poesia, ironia, bom humor... e, especificamente em Louvação, a crítica é atual, não?
Muito atual. Além das sábias palavras do velho Braga. Difícil encontrar a pureza e a verdade das coisas nos dias de hoje no meio de tanta falsidade! (Carlos David)
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