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Quarta-feira é dia de: Gabriel García Márquez, aniversariante do dia.





          Por vocês
     Agora que estamos sozinhos, entre amigos, gostaria de pedir a cumplicidade de todos vocês para que me ajudem a conseguir suportar a lembrança desta tarde, a primeira em minha vida em que vim de corpo presente e em pleno uso de minhas faculdades para fazer ao mesmo tempo duas coisas que eu tinha prometido a mim mesmo não fazer jamais: receber um prêmio e fazer um discurso.
     Sempre acreditei, contra outras opiniões muito respeitáveis, que nós, escritores, não viemos ao mundo para sermos coroados, e muitos de vocês sabem que toda homenagem pública é um princípio de embalsamamento. Sempre acreditei, enfim, que nós, escritores não somos escritores por nossos próprios méritos, e sim pela desgraça de não conseguirmos ser outra coisa na vida, e que nosso trabalho solitário não deve merecer mais recompensa nem mais privilégios que os que merece o sapateiro por fazer sapatos. No entanto, não pensem que venho me desculpar por ter vindo, nem que trato de menosprezar a distinção que fazem, ao amparo do nome propício de um homem grande e inesquecível das letras da América. Ao contrário: eu vim regozijar no espetáculo público, por ter conhecido um motivo que abre gretas em meus princípios e amordaça meus escrúpulos: estou aqui, amigos, simplesmente por causa do meu antigo e obstinado afeto por esta terra em que certa vez fui jovem, indocumentado e feliz, como um ato de carinho e solidariedade com meus amigos da Venezuela, amigos generosos, porristas, sacanas e gozadores até a morte. Por eles eu vim, ou seja, por vocês.


Discurso feito por ocasião do recebimento do Prêmio Rómulo Gallegos, concedido a Cem Anos de Solidão.
Caracas, Venezuela 2 agosto de 1972

Em: Eu Não Vim Fazer Um Discurso, Márquez Gabriel G.
Ed.Record 2011.

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