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Criado - Mudo,Mário Prata


     Tudo começou quando resolvi me mudar do décimo para o quarto andar, aqui mesmo, neste edifício da Alameda Franca. Um carrinho de supermercado seria o suficiente. Queria fazer lá embaixo um lar, já que isso aqui virou um vício.
Lá no quarto andar, tem quatro apartamentos.Eu não conhecia ainda os vizinhos quando o fato se deu. Passei o dia levando coisas lá para baixo. Há dois dias faço isso, ajudado pela Cristina.
     Uma das últimas viagens e lá ia eu com a Cris ao lado, descendo pelo elevador.
Carregávamos o criado-mudo. O criado-mudo tem uma gavetinha. Quando a porta se abriu, havia duas famílias esperando. Meus vizinhos. Pai, mãe, crianças e até uma avó. Foi quando eu estendi o braço para me apresentar como o novo vizinho que tudo aconteceu. E foi muito rápido. Muito.
     Quando eu tirei a mão do movelzinho para cumprimentar aqueles que agora são meus vizinhos, a gavetinha deslizou. Eu ainda tentei uma gingada com o corpo pra ver se evitava a catástrofe, mas não adiantou.
     A filha da mãe estava indo para o chão, lisa como quiabo, com tudo dentro.
E não existe nada mais indiscreto que uma gavetinha de criado-mudo de um homem que mora sozinho. Ou mesmo que não more. Ali você vai jogando coisinhas, papéis.
Coisas, enfimCoisas que só têm um destino na vida: a gavetinha do criado-mudo.
     Entre a danada escapar do móvel e esparramar tudo pelo chão, não devem ter sido nem dois segundos. Mas estes dois segundos foram sofridos.
      Neste pedacinho de tempo tentei, em vão, me lembrar do que era que tinha lá dentro e conseqüentemente, toda a vizinhança ia ver. Além da Cristina.
Não deu outra. A gaveta caiu de quina e tudo voou, de cabeça pra cima, tudo querendo se mostrar.
     Há quanto tempo aquilo tudo não via a luz do dia, já que ficavam debaixo do abajur lilás? E não ficou tudo amontoadinho, não. O material se esparramou legal pelo hall.
Diante do que vi no primeiro bater de olhos, a idéia foi pular em cima e cobrir tudo com o corpo até todo mundo sumir dali.
Sim, na gavetinha do criado-mudo a gente joga tudo.Pelos meus cálculos, devia ter coisas ali dos últimos cinco anos.
Eu não tinha idéia do que é que estava indo para o chão e aos olhos da vizinhança estupefata. Um pedaço da minha vida estava ali, no chão, sujeito à visitação pública.
Uma vergonha.
     E o pior é que não dava para pegar tudo de uma vez. Teve pilha que rolou escada abaixo. Moedinhas rodopiavam sem parar, fazendo aquele barulhinho.
A primeira coisa que a Cristina recolheu foi um par de brincos douradérrimos. Que não eram dela. E eu não ia explicar ali que eu não tinha a menor idéia de quem foram. Podiam estar ali há cinco, seis anos.
As crianças olharam para três camisinhas e deram-se sorrisos cúmplices. Não foi bem este o olhar da Cris.
Aquele pequeno despertador com o vidro quebrado. Estava parado às 10h10 do dia 23, sabe-se lá de que mês ou ano. Três edições da Playboy. Velhas. Uma da Tiazinha. Constrangimento.
     Pra minha sorte, bem ao lado caiu a História da Filosofia, de I. Khlyabich.
E o livro daquela jovem namorada do Sallinger, do Apanhador no Campo de Centeio. Amenizou um pouco. E as camisinhas eram de 98, tava escrito lá. Limpou um pouco a barra. Um pouco.
Sim, por outro lado, mostrava que desde 98 que eu... Deixa pra lá.
Tinha o menu da minha aula de culinária de março.Tinha procurado tanto o Guia de Acesso Rápido do celular. Tava lá.
Agora eu ia aprender a apagar os telefones vencidos da caixa.
Meu Deus, o que é aquilo no pé do garoto? Viagra!
E o filho da mãe pegou e mostrou para o pai, que me olhou com pena, com dó: tão jovem...
Tive que dar explicações: - Hehe, é o Jair, que é do 103, psicanalista, amostra grátis...
Cris, com os alheios brincos na mão, escondeu o Viagra. Vexame total.
Mas isso era só o começo da minha vida esparramada no chão de mármore.
- A conta da compra do computador que eu dei para a minha irmã.
- Duas pilhas Duracell que jamais saberemos se estão boas ou já usadas. Esse problema de pilhas soltas me enlouquece.
- Sabe aquelas moedinhas de orelhão que não funcionam mais? Várias.
- Uma foto minha com a atriz Manoella Teixeira, abraçados na porta do Ritz (isso foi há dois anos, fui logo explicando).
- Uma cartela de Lexotan, uma de Frontal e uma de Zoloft. Pronto, os vizinhos não teriam mais dúvidas. Um louco deprimido se aproximava.
- Quatro canetas Bic que eu duvido que ainda funcionem.
- Uma capinha de celular que eu comprei há uns quatro anos e não serviu.
- Uma caneta dessas de marcar texto, aquela amarela, sabe? Seca, é claro.
- Um tubo de Redoxon, vencido há várias gripes.
- Um papelzinho com um telefone que jamais saberemos de quem é.
- Um benjamim.
- Um tubo (suspeitíssimo) de Hipoglós.
- Um disquete de computador sem nada escrito nele. O que pode ter aqui?
- Um par de óculos escuros que nunca foram meus.
- Umas cinco ou seis chaves que nunca saberei que portas abrem.
- Um livrinho mandado (e escrito) por um leitor, com o nome Ser Gay é Ser Alegre.Como explicar isso, de joelhos?
- E, para encerrar o meu derrame, um papel em branco com um beijo de batom vermelho, bem no meio. Tentei dizer que era da minha afilhada, Maria Shirts,mas não colou.
Fui recolhendo aquilo tudo, aqueles pedaços da minha vida e colocando de
novo dentro da gavetinha. E me levantei.
Entramos em silêncio no apartamento, eu certo de que ia começar uma nova
vida ali.
Mas logo cheguei à conclusão de que a gente nunca começa nada, a gente
continua.
Ajeitei o criado-mudo ao lado da cama.
Fiquei olhando para o indiscreto móvel que eu achava mudo.
Mas que, em dez segundos, contara cinco anos da minha vida.

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