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Apenas Um Gesto, Diogo Valença


      Um lar bonito, finanças em ordem; tudo em paz. Essa paz era um problema. Queríamos quebrá-la, quebra-la com a alegria irrequieta de uma criança, de um filho que não vinha.
     Tantos anos já havíamos sonhado e sonhando tentado. Foram muitos os testes, exames laboratoriais, até proveta e nada. Nosso lar continuava sem herdeiros. Já não tínhamos vigor físico nem ânimo para tentar. Mas, se Sara e Abraão no ocaso de suas vidas, foram abençoados, tentaríamos outra vez. E se adotássemos?  Seríamos capazes de amar não provindo de nós mesmos? E, se depois de tudo, de nos capacitarmos para amá-la, seus pais biológicos quiserem-na de volta? Quantas dúvidas. Interrogações mil.
     Conversamos com amigo que tiveram igual dilema. Iríamos enfrentar obstáculos; preconceitos de nossos familiares. ainda tínhamos amor para dar.
     Final de tarde de um setembro marcante. Acabara-se a longa espera.
     Ela chegou. Nova, novinha, três meses de vida. Magra,muito magra veio em uma caixa de sapatos e ainda que tão pequeno, o espaço, lhe fora grande.
     Seus olhinhos bem azuis exprimiam insegurança, curiosidade. Medo
      Para quem a olhasse alcançando o futuro, veria beleza naquele corpinho frágil. Fora escolhida, isso mesmo. Escolhida entre tantas de igual pouca sorte.
     Sua chegada alegrou e a um mesmo tempo, perturbou seu novo universo, inspirou muitos cuidados, trouxe apreensões, modificou o viver rotineiro do lar antes "em paz". Crescendo, fez das plantinhas e sofás alvo preferido para exercitar seus atributos destruidores.
     Repreensões e palmadas deram-lhe algum limite. Só comia o que queria, fosse ou não do seu natural cardápio.  Fogão e geladeira recebiam sua visita fora de hora.
     Apetite estranho e descontrolado aquele. Olhar amedrontado e sofrido depois de uma boa reprimenda deixava qualquer ser pétreo liberar lágrimas de arrependimento.
    Cresceu, ganhou mais espaço. Não ganhou peso. Era só um risco de gente a espalhar alegria. Seu jeitinho amoroso de encostar-se conquistava pessoas. Sem dizer uma palavra fazia-se sempre ser compreendida ou irritava e irritava muito. Diversões esquisitas escolhia. Morcegos adentrados ao seu recinto tornavam- se objeto de suas duras brincadeiras, divertindo-se até matá-los. Só ela era capaz de pelos seus olhinhos azuis não ver a feiura de tais visitantes. Estava mais alta. Ouvir a campainha ou o interfone era o bastante para deixá-la aos saltinhos de curiosidade, e a seu modo, dar boas vindas a quem abrisse a porta.  Armários ou gavetas abertas eram irresistíveis para ela. Gritos ou choro alto eram talvez as únicas coisas que lhe despertavam uma certa agressividade.
     Vacina, médicos, banhos eram motivo de resistência: de nenhum deles gostava. O elevador lhe causava insegurança, desejo de voltar para seu mundinho seguro, conhecido. Fugiu algumas vezes para logo voltar arrependida, desconfiada, implorando um afeto e compreensão que sempre ganhava. Era linda.
    Adulta, não engordou. Não teve namorados nem conheceu os prazeres do sexo presa que vivia nas alturas do seu edifício. Vizinhos quase não a conheciam, nem parecia lhe fazerem falta. Inimigo só teve um, o cachorro do andar de cima, onde também morreu afogada na piscina a única parenta que conhecera. Andar sinistro aquele do alto!
     Aos 14 anos a vida transcorria monotonamente. De súbito uns nódulos. Junto com eles veio aquele medo. Será? Serão? Não é possível, ela não merece, não fez por onde, é tão jovem ainda.! Biópsia. Sim eram malignos, sem dúvida alguma!
     Seis meses foi o prazo anunciado pelo médico. Seis meses é tão pouco para quem tem apenas 14 anos! Seis meses! Como o tempo pode ser a um só instante curto e precioso. Ou talvez por isso mesmo. Seis meses, seu olhinhos azuis já não brilham tanto,mas continuam azuis, azuis  como o céu do sertão ressequido.
     5,4 meses, o mal está vencendo, vitória certa, não desejada.3,2 meses, respiração difícil, corrida ao médico, sondas, agulhas, respirador artificial, recursos possíveis para tentar o impossível, deter uma vencedora, a doença, a sua malignidade.
     Aquele corpinho, ainda frágil, já não mais reage. Chegou a hora de autorizarmos o desligamento do equipamento. E aí? teríamos direito sobre a vida dela? Teríamos esse direito sobre aquela vida? Deixá-lo ligado não seria prolongar um inútil sofrimento? E aqueles olhinhos não mais tão azuis estariam entendendo a situação? Nunca saberemos.
     Impotentes para fazer mais qualquer coisa passamos outra vez, a última vez, as mãos pelo seu corpo já quase frio. Um gesto, "apenas um gesto" foi-nos possível na tentativa de dizermos "adeus minha filha", e,como se respondendo, ou assim gostaríamos que pudesse ter sido, duas lágrimas lhe escorreram. Não as enxugamos. Corremos da sala.
     Desligue doutor, desligue tudo. Liberte rápido a quem, por alguns anos nos libertou do vazio de um lar sem filhos. Desligue.
    A vida não pára. Cá fora, outros olhos azuis procuram entre lágrimas um novo sentido para continuar existindo. Mesmo só isso, continuar a  existir.
     De volta para casa, tela-e-mos por algum tempo retida na memória depois, uma a uma daremos destino às suas coisas e pertences, até as fotos, nos fixando nos momentos alegres havidos durante 14 anos.
Um dia talvez, quem sabe? encontrala-e-mos na vastidão do espaço. Quem sabe, há tantos mistérios debaixo do sol!

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