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Ponto de Crochê, Dalton Trevisan

     Ponto de uma laçada, meio ponto, sob o vidrilho azul do abajur, pontas de agulha que revolem a memória, menina de tranças no espelho dourado da sala. oh! banguela, Oh cirandinha, meu anel era de vidro, você é mulher imprestável; por favor, mãe. O grande leão do circo. De quem o retrato, Gabriel? Essa fulana quem é?
     Três trancinhas, meio ponto, ponto de duas laçadas, boca do filho mordendo-lhe o seio. Perdão, mãe, não faço mais, o leão de boca escancarada no picadeiro; ervilhas para o almoço, quanto é a dúzia de ovos? vinte anos de casados, vamos celebrar, Gabriel? Que a Anita brigou com o noivo, não? pois brigou. Meu filho, respeite seu pai, disse Jesus, ponto meio ponto. Meu pai é um cretino. Ora, um dia igual aos outros... Bigode de homem na água trêmula e, Jesus Maria José, se tivesse fugido como a Alzira?
     Desmanchar o ponto, errou.
     Falarei com o filho, véu preto no rosto, anéis no dedo. Arroz, feijão, carne assada, a ervilha quanto é? Mano Ismael, desquitado da mulher à-toa (sorriso desdenhoso da mulata), por onde andará o filho? Tantos cruzeiros numa xícara do guarda-louça, a última no canto, três trancinhas, meio ponto: tudo eu, Joãozinho. Verde olho daquele homem, o rol da roupa suja: onde está a abotoadura?
     O gato comeu, disse, rindo-se ao vê-lo em cueca xadrez. Mãe, quem é a mulher do retrato? Essa fulana levou seu pai à falência. Meu pai é um cretino. Gabriel chorando, a cabeça nas mãos.
     Homem fraco, ponto de duas laçadas. Uma vez, numa rua, numa tarde, uma vez, numa rua, numa tarde, um homem. Dedos alheios dirigindo a agulha, mãe, olha lá o leão.
     Gosta deste quimono? Não elogiou o quimono de seda, a mão sem ruído cruzando o fio, irresistível fim de tudo, duas solteironas à janela - o sol na parede amarela. Menina de tranças diante do espelho, o chinelo gasto a seus pés, ao lado de cestinha de costura: uma, duas, três meias a cerzir. Amanhã quinta-feira, macarrão para o almoço - mais pó sobre os móveis.
     11 de março de 1945, a missa para as almas do purgatório. Longe da aflição das mães, o padre no confessionário, uma vez, numa rua, numa tarde, um homem: ponto, meio ponto, ponto, como é linda essa valsa, dançá-la bom seria. A porta da rua que se abre, passos pesados de homem no corredor, paz.
     Um ponto, um pensamento, e outro, depois outro, o silêncio da madrugada. Gabriel bêbado que chegou da farra: Por tua causa colombina, passei um triste carnaval... sonhou com dona Matilde, dedo gelado de morta, a face perdida na sombra: meu filho, quer arroz? meu filho, quer um copo de leite? Meu  filho não quer.
     E disse, o negro véu molhado na boca: Do que eu mais gosto é um copo de cerveja. Gabriel deixar o vício? Se contasse o sonho... Não, rir-se-iam, pai e filho, da pobre Matilde. O velho chapéu no cabide, anúncio de sua volta. Dedos velozes sob o vidrilho azul: sou feia? dona sedutora? Por tua causa, colombina.
     Vestido vermelho de veludo, anéis nos dez dedos, uma pérola na orelha, mulher chorando na tarde, ponto de duas laçadas - o sorriso desdenhoso na lágrima. Guardou o novelo, a agulha, a toalha na cestinha. Ergueu o rosto para o corredor iluminado, os passos agora mais perto.

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