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O Doutor Freitas, Gabriel García Márquez


No primeiro dia do mês em curso escreveu-se nesta seção uma crônica sobre abril. Esperava este jornalista que no transcurso desses trinta dias acontecessem algumas coisas interessantes, entre elas, que Pafúncio se fartasse com um pratarraz de feijão com arroz no boteco do Perico; que Clark conseguisse seduzir a Srta. Lane sem necessidade de transformar-se em Super-Homem e que Tarzan deixasse de praticar suas bobagens atleticamente selvagens.
Parece que no que já transcorreu do mês nada disso aconteceu, como não acontecerá no que falta dele, segundo se pode suspeitar. Quanto ao casamento de Ingrid Bergman, as últimas notícias dão a entender que o diretor Rosselini ainda espera saber com quem se pareça a criança antes de lançar ao pescoço a coleira conjugal. Em síntese, a única coisa que parece ter dado certo naquela crônica de saudação aprilina foi a comprovada reivindicação do Dr. Heleno de Freitas no gramado do campeonato nacional. Um acordo que poderia encher de orgulho o próprio dr. Gallup, não tanto por sua precisão, mas pela circunstância especial de que quem revelou a notícia a respeito do jogador brasileiro jamais se sentou nas gerais de um estádio.

Tenho o costume – e isso pode ser uma das formas da inclinação pelo esporte – de observar, nas tardes dos domingos, o rosto daqueles que deixam o estádio. A tarde em que o dr. De Freitas apresentou-se pela primeira vez, é muito possível que, se ele tivesse a capacidade de entender certas interjeições castelhanas, teria regressado ao Brasil no primeiro avião. O tempo passou e no domingo seguinte, depois de treinar incansavelmente com os companheiros de seu time, o dr. De Freitas deve ter chegado à conclusão de que, mais do que tais práticas esportivas, lhe seria melhor uma prática metódica e consciente da gramática castelhana. Foi assim que pôde realizar bem melhor sua segunda apresentação, mostrando-se já capaz de compreender que a gritaria vinda das tribunas não era de aprovação, mas de descontentamento. E já em sua nova apresentação em Barranquilla, de volta de Cáli, o dr. De Freitas mostrava-se capaz de conjugar perfeitamente os tempos simples do verbo “fazer”. “Farei milagres”, declarou à imprensa, ao dar-se conta de que o público queria exatamente isso. Que fizesse milagres. E, segundo me contam alguns que estiveram nesse dia no Estádio Municipal, o que o brasileiro fez foi uma milagrosa atuação. Praticamente, disseram, o dr. De Freitas – que deve ser um bom advogado – redigiu nesta tarde, com os pés, memoriais e sentenças judiciais não apenas em português e espanhol alternadamente, mas também citações de Justiniano no mais puro latim clássico.
Agora ninguém mais discute que abril foi o mês definitivo para o dr. De Freitas, e isso porque ele aprendeu a traduzir para o espanhol toda essa gíria esportiva que tanto prestígio lhe deu em seu país de origem. Como diz um grande contista nosso: “O importante é a gramática.”


(Crônica extraída do livro  Obra jornalística - Vol. 1 - Textos caribenhos,Editora Record, 2006, pgs. 238 e 239) mantida a grafia original

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