Pular para o conteúdo principal

As Reuniões, Aníbal Machado


            Quando começo a dormir , deixo as idéias  quase sempre reunidas  debaixo de uma espécie de marquise no alto da região frontal. Não todas: as mais salientes.
            Ao despertar , ainda as encontro lá, sempre se mexendo e discutindo.
           Ora, não se pode dormir tranquilo com essas reuniões à entrada e saída do sono. Parece uma perseguição.

            Não adianta alegar que o sono é o meu único domínio de fato – elas sabem disso; o país das transparências onde impera o regime de vapor  e sonho que a vigília nunca me trouxe .
            Por que então se intrometem?
           É de ver o que ficam fazendo.Cochicham, brigam, repetem mil vezes coisinhas do dia. Ainda é bom quando me esquecem e se limitam a perturbar-me o repouso , batendo e arranhando as paredes do crânio.
         Pior é quando  me fazem subir para tomar parte na discussão. Põem-se a criticar-me, a fazer picuinhas. E como sujam a sala!
          Algumas me lisonjeiam, fazem propostas agradáveis. Quando começo a iludir-me ,descubro que estão zombando de mim,encho-me de raiva.
          E não sei por que ainda fico como  imbecil a acompanhar-lhes a pantomima .
         Às vezes parece mesmo um balé,um balé de mau gosto, inspirado no que há de mais vulgar das minhas horas perdidas. Chego até a distrair-me, por que não dizê-lo?
        Mas isso não é vida.
        Quando vem o sono já não me sinto à altura ...E é uma noite a menos, noite estragada. E todo um programa de sonhos mais uma vez adiado.
        Eis a que fico reduzido depois de tais reuniões.
       Não é só debaixo da grande marquise  que elas se realizam. Há outras, em pontos não bem localizados. Atrás da cabeça, por exemplo, há uma. É a mais obscura, a que se verifica mais distante de mim.
        Perto do rim esquerdo, costuma haver também; talvez  a menos freqüentada, mas por um grupo suspeito. A dos testículos e imediações só termina com a audiência da companheira...

         Em geral, essas ideias têm suas nascentes na cabeça. Muitas, porém derivam dos intestinos. E não sei como conseguem figurar nas reuniões lá de cima. São ávidas,levianas e têm muito da cor dos acontecimentos do dia. Só dão aborrecimentos.
         Admira que meu sangue se preste a transportá-las.
         Há outras que provêm de regiões mais opacas. Aparecem como nebulosas, não sei bem o que querem. São uma espécie de larvas que se criam numa zona em que sempre faz noite na gente, e onde sei existir o lago ou poço dessas algas que são vistas em meus olhos, quando paradas de espanto ou de terror.
           Tudo isso me invade, me desorganiza.
           Até à madrugada, passam grupos nômades em correria.
           Oh, como conseguir a unidade em meu ser? Como pacificar a minha federação?

(Em Cadernos de João -1957)Aníbal Machado

Comentários

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.