Ainda estudante, ele pensava que sabia inglês, como geralmente acontece. Vivia às voltas com autores ingleses, que tomava de empréstimo numa biblioteca. Um dia se enfiou destemidamente pela poesia - pelo menos apareceu na faculdade com um volume de Byron debaixo do braço. Não tinha a menor intenção de humilhar os colegas, mas tão-somente a de ficar lendo o tempo todo, com aquela voracidade da juventude, que não busca propriamente entender o que lê, mas a satisfação de já ter lido. Não deixou, porém, de impressionar a patuléia ignara:
- Está lendo Byron no original
Alheio ao sucesso que causava, passou de Byron a Shelley,deste a Oscar Wilde, e tanto bastou para que se visse cercado de prestígio e admiração:
- Conhece poesia pra burro.
- Literatura inglesa é com ele.
Quando deu por si era uma espécie de mentor de ala intelectual dos moços, oráculo da cultura européia, o Britânico. Em torno dele vicejava a fina flor da estudantada, vivendo das migalhas que tombavam de sua erudição:
- Kears se deixou devorar pelo romantismo.
- To be or not to be, that is the question.
Mas o Britânico não era o único a imperar. À frente de outra ala, a nacionalista, pontificava um bardo de alto coturno, condoreiro,telúrico e descabelado. Castro Alves redivivo e autor de um famoso verso que falava no patriotismo de rubra flama, rimando com o som troante do canhão que rebrama.
Em torno do beletrista auriverde também se aglutinava uma confraria de admiradores, inspirados nas mais genuínas fontes da poesia pátria. O Britânico torcia-lhe o nariz:
-Nunca ouviu falar em Marlowe.
O Bardo,por sua vez, procurava avacalhá-lo:
- Intelectual de gabinete. Qualquer cantador do nordeste tem mais inspiração.
E as duas correntes se hostilizavam. Um dia, porém, deu-se o imprevisto: num transbordamento de entusiasmo criador, o Bardo não se conteve e de surpresa levou ao Britânico a última produção de sua lavra:
- Dá uma olhada nisso aí, me diga o que você acha.
O que pretendia ser apenas um gesto de superior condescendência para com a cultura européia, de súbito pareceu aos outros completa rendição do gênio pátrio. Era a poesia nacional que se curvava ao beneplácito da crítica alienígena.
As coisas ficaram mal-paradas para o Bardo: o Britânico é que assumiu um ar condescendente e se pôs a ler a versalhada, sob a expectativa dos demais. enquanto lia, pensava apenas no que dizer, e acabou optando pela força mais expressiva de um britânico laconismo
- É bom, no gênero - disse apenas, gravemente, devolvendo ao Bardo a sua papelada.
Mas um dos que lhe reconheciam as glórias da superioridade cultural, tendo lido também, por cima dos ombros, ousou estranhar:
- Você achou bom? E o hemistíquio?
O Britânico se voltou, intrigado:
- O quê?
- O hemistíquio, meu velho - tornou o outro com intensidade, apontando os versos: o que é que você me diz do hemistíquio?
O Bardo arregalou os olhos, observando um e outro. Em redor se fez silêncio e todos aguardavam, compenetrados.
- Hemistíquio - e o Britânico fez um gesto evasivo: Ora, o hemistíquio está aí.
- Aí onde, que eu não ví?
- O Britânico relanceou os olhos em torno, sentindo-se perdido.
- Está aí, repetiu.
- Onde? outros perguntavam agora, já irônicos: vai ver que ele não sabe o que é hemistíquio.
- Ninguém sabia. O Bardo muito menos:
- Isso mesmo: quede o hemistíquio? Me mostre que bicho é esse. O que é hemistíquio?
Um dicionário, meu Deus, tão fácil, um dicionário! ele que sabia o que queria dizer plebiscito.
- Ora...- resmungou, britanicamente aborrecido, e foi tratando de abrir caminho para a mais inglória das retiradas.
Os outros não perdoaram: - Se não sabe diga logo.
- Não foge não. Ensina pra gente.
Fugiu, desavergonhadamente. Seu prestígio foi por água a baixo: desde aquele dia, deixou de ser o Britânico, e passou a ser conhecido como o Hemistíquio.
- Está lendo Byron no original
Alheio ao sucesso que causava, passou de Byron a Shelley,deste a Oscar Wilde, e tanto bastou para que se visse cercado de prestígio e admiração:
- Conhece poesia pra burro.
- Literatura inglesa é com ele.
Quando deu por si era uma espécie de mentor de ala intelectual dos moços, oráculo da cultura européia, o Britânico. Em torno dele vicejava a fina flor da estudantada, vivendo das migalhas que tombavam de sua erudição:
- Kears se deixou devorar pelo romantismo.
- To be or not to be, that is the question.
Mas o Britânico não era o único a imperar. À frente de outra ala, a nacionalista, pontificava um bardo de alto coturno, condoreiro,telúrico e descabelado. Castro Alves redivivo e autor de um famoso verso que falava no patriotismo de rubra flama, rimando com o som troante do canhão que rebrama.
Em torno do beletrista auriverde também se aglutinava uma confraria de admiradores, inspirados nas mais genuínas fontes da poesia pátria. O Britânico torcia-lhe o nariz:
-Nunca ouviu falar em Marlowe.
O Bardo,por sua vez, procurava avacalhá-lo:
- Intelectual de gabinete. Qualquer cantador do nordeste tem mais inspiração.
E as duas correntes se hostilizavam. Um dia, porém, deu-se o imprevisto: num transbordamento de entusiasmo criador, o Bardo não se conteve e de surpresa levou ao Britânico a última produção de sua lavra:
- Dá uma olhada nisso aí, me diga o que você acha.
O que pretendia ser apenas um gesto de superior condescendência para com a cultura européia, de súbito pareceu aos outros completa rendição do gênio pátrio. Era a poesia nacional que se curvava ao beneplácito da crítica alienígena.
As coisas ficaram mal-paradas para o Bardo: o Britânico é que assumiu um ar condescendente e se pôs a ler a versalhada, sob a expectativa dos demais. enquanto lia, pensava apenas no que dizer, e acabou optando pela força mais expressiva de um britânico laconismo
- É bom, no gênero - disse apenas, gravemente, devolvendo ao Bardo a sua papelada.
Mas um dos que lhe reconheciam as glórias da superioridade cultural, tendo lido também, por cima dos ombros, ousou estranhar:
- Você achou bom? E o hemistíquio?
O Britânico se voltou, intrigado:
- O quê?
- O hemistíquio, meu velho - tornou o outro com intensidade, apontando os versos: o que é que você me diz do hemistíquio?
O Bardo arregalou os olhos, observando um e outro. Em redor se fez silêncio e todos aguardavam, compenetrados.
- Hemistíquio - e o Britânico fez um gesto evasivo: Ora, o hemistíquio está aí.
- Aí onde, que eu não ví?
- O Britânico relanceou os olhos em torno, sentindo-se perdido.
- Está aí, repetiu.
- Onde? outros perguntavam agora, já irônicos: vai ver que ele não sabe o que é hemistíquio.
- Ninguém sabia. O Bardo muito menos:
- Isso mesmo: quede o hemistíquio? Me mostre que bicho é esse. O que é hemistíquio?
Um dicionário, meu Deus, tão fácil, um dicionário! ele que sabia o que queria dizer plebiscito.
- Ora...- resmungou, britanicamente aborrecido, e foi tratando de abrir caminho para a mais inglória das retiradas.
Os outros não perdoaram: - Se não sabe diga logo.
- Não foge não. Ensina pra gente.
Fugiu, desavergonhadamente. Seu prestígio foi por água a baixo: desde aquele dia, deixou de ser o Britânico, e passou a ser conhecido como o Hemistíquio.
Amigos, eu também não sabia o significado.
Hemistíquio: metade de um verso alexandrino; p. ext.metade de qualquer verso (dicionário do Aurélio) -
As crônicas do Fernando Sabino sempre interessantes. Gosto muito dele.
ResponderExcluir