Pular para o conteúdo principal

O Hemistíquio, Fernando Sabino

      Ainda estudante, ele pensava que sabia inglês, como geralmente acontece. Vivia às voltas com autores ingleses, que tomava de empréstimo numa biblioteca. Um dia se enfiou destemidamente pela poesia - pelo menos apareceu na faculdade com um volume de Byron debaixo do braço. Não tinha a menor intenção de humilhar os colegas, mas tão-somente a de ficar lendo o tempo todo, com aquela voracidade da juventude, que não busca propriamente entender o que lê, mas a satisfação de já ter lido. Não deixou, porém, de impressionar a patuléia ignara:
       - Está lendo Byron no original
      Alheio ao sucesso que causava, passou de Byron a Shelley,deste a Oscar Wilde, e tanto bastou para que se visse cercado de prestígio e admiração:
       - Conhece poesia pra burro.
       - Literatura inglesa é com ele.
Quando deu por si era uma espécie de mentor de ala intelectual dos moços, oráculo da cultura européia, o Britânico. Em torno dele vicejava a fina flor da estudantada, vivendo das migalhas que tombavam de sua erudição:
       - Kears se deixou devorar pelo romantismo.
       - To be or not to be, that is the question.
Mas o Britânico não era o único a imperar. À frente de outra ala, a nacionalista, pontificava um bardo de alto coturno, condoreiro,telúrico e descabelado. Castro Alves redivivo e autor de um famoso verso que falava no patriotismo de rubra flama, rimando com o som troante do canhão que rebrama.
     Em torno do beletrista auriverde também se aglutinava uma confraria de admiradores, inspirados nas mais genuínas fontes da poesia pátria. O Britânico torcia-lhe o nariz:
     -Nunca ouviu falar em Marlowe.
     O Bardo,por sua vez, procurava avacalhá-lo:
     - Intelectual de gabinete. Qualquer cantador do nordeste tem mais inspiração.
     E as duas correntes se hostilizavam. Um dia, porém, deu-se o imprevisto: num transbordamento de entusiasmo criador, o Bardo não se conteve e de surpresa levou ao Britânico a última produção de sua lavra:
     - Dá uma olhada nisso aí, me diga o que você acha.
     O que pretendia ser apenas um gesto de superior condescendência para com a cultura européia, de súbito pareceu aos outros completa rendição do gênio pátrio. Era a poesia nacional que se curvava ao beneplácito da crítica alienígena.  
     As coisas ficaram mal-paradas para o Bardo: o Britânico é que assumiu um ar condescendente e se pôs a ler a versalhada, sob a expectativa dos demais. enquanto lia, pensava apenas no que dizer, e acabou optando pela força mais expressiva de um britânico laconismo
     - É bom, no gênero - disse apenas, gravemente, devolvendo ao Bardo a sua papelada.
     Mas um dos que lhe reconheciam as glórias da superioridade cultural, tendo lido também, por cima dos ombros, ousou estranhar:
      - Você achou bom? E o hemistíquio?
      O Britânico se voltou, intrigado:
      - O quê?
      - O hemistíquio, meu velho - tornou o outro com intensidade, apontando os versos: o que é que você me diz do hemistíquio?
      O Bardo arregalou os olhos, observando um e outro. Em redor se fez silêncio e todos aguardavam, compenetrados.
      -  Hemistíquio - e o Britânico fez um gesto evasivo: Ora, o hemistíquio está aí.
       - Aí onde, que eu não ví?
       - O Britânico relanceou os olhos em torno, sentindo-se perdido.
     - Está aí, repetiu.
     - Onde? outros perguntavam agora, já irônicos: vai ver que ele não sabe o que é hemistíquio.
      - Ninguém sabia. O Bardo muito menos:
      - Isso mesmo: quede o hemistíquio? Me mostre que bicho é esse. O que é hemistíquio?
      Um dicionário, meu Deus, tão fácil, um dicionário! ele que sabia o que queria dizer plebiscito.
      - Ora...- resmungou, britanicamente aborrecido, e foi tratando de abrir caminho para a mais inglória das retiradas.
       Os outros não perdoaram: - Se não sabe diga logo.
       - Não foge não. Ensina pra gente.
       Fugiu, desavergonhadamente. Seu prestígio foi por água a baixo: desde aquele dia, deixou de ser o Britânico, e passou a ser conhecido como o Hemistíquio.

Amigos, eu também não sabia o significado.
Hemistíquio: metade de um verso alexandrino; p. ext.metade de qualquer verso (dicionário do Aurélio) -

Comentários

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.