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Mimiro, Raquel de Queiroz



    Se nome se gastasse, de tanto uso, o nome do Mimiro já devia estar no último fio. Porque a tôda hora, da madrugada às dez da noite, é menino, mulher e homem chamando por êle: “Mimiro, ô Mimiiiiroooô”!
    E Mimiro longe. Parece que goza de uma umiqüidade às avessas, isto é, tem o dom de não estar em parte alguma, em hora nenhuma.
    A família do garôto é esquisita e numerosíssima. Formou-se não por via regular de casamento e nascimentos, mas por aglutinação. Os dois indivíduos que lhe constituem o núcleo, e são tècnicamente o pai e a mãe, chegaram ao atual estágio através de um longo processo de uniões e separações com outros indivíduos que já desapareceram da história. Junta com esta companheira, larga, fica com os filhos, junta outra vez, larga outra vez, mais filhos, e assim por diante. Por fim, - sobejos dêsses amôres curtos mas geradores, - temos um pai com filhos de várias mães, uma mãe com filhos de vários pais, que vieram abrigar num só lar (“Lar de Pequenina”, como diz o letreiro à porta), aquela prole tão heterogênea na origem, quanto na côr e no temperamento.
    Dito assim parece confuso. Mas é o seguinte. O nosso amigo Carlindo, de profissão mata-mosquitos, passou por várias experiências sentimentais. Dêsses amôres houve prole. Homem sem sorte, mas obstinado e pai amoroso, foi ficando com os filhos à medida que as amadas se dispersavam. A primeira morreu, a segunda fugiu, a terceira não fugiu mas saiu de casa abertamente, na hora do almôço, por desafôro. Deixou sentado no terreiro, aos berros, entre os pintos e a ninhada de cachorros novos, o filhinho de oito meses.
    A quarta experiência de Carlindo foi Dona Pequenina, mulher também de vasto tirocínio e vida acidentada. Essa não usou, no seu caso, a ordem rigorosa dos amôres do companheiro. Amou um pouco ao acaso, e seria mais por acidente que por carinho materno que ia ficando com os frutos dessas uniões rápidas. Em geral, quando nascia a criança, há muito que a mãe mudara de idéia e de cavalheiro. Quando afinal, cansada de tanta incerteza e disposta a arribar em pôrto mais tranqüilo, aceitou a mão e o nome do mata-mosquitos e deixou que êle, no primeiro entusiasmo, escrevesse “Lar de Pequenina” no frontão da casa, trazia consigo uma récua de criança, de variadíssima pigmentação. Menino escuro de cabelo liso, uma cabrocha clara, de ôlho verde e de cabelo duro, criança loura, criança de tôda espécie. E entre êsses saiu Mimiro. Há de ter sido a geração de Mimiro um dos piores lapsos sentimentais de D. Pequenina, porque o garôto em casa é assim uma espécie de enjeitado. O padrasto, então, já nem é só padrasto para êle é madrasta, e das péssimas.
    Mimiro chama-se na realidade Casimiro; tem trese anos e aparenta nove; é moreninho tostado, de fala sonsa e rouca, a perna fina, o olhar baixo, de viés. Nunca foi à escola. Diz que não adianta ir, porque é canhoto. Jamais ninguém lhe viu no pé um tamanco, ao menos, nem no corpo uma roupa nova. Usa sempre na cabeça uma carapuça de choché escondendo o crânio coberto de feridinhas teimosas, quase da idade dêle próprio.
    Mal amanhece o dia já estão gritando com êle. Para dar capim a cabrita. Para subir no morro e ver se o porco fugiu do chiqueiro. Para apartar os meninos menores, que estão brigando. Para deixar as crianças em paz. Para dar uma carreira na venda. E de vez em quando o padrasto muge, feroz:
    -Mimiro, moleque dos diabos, dou-te uma surra!
    Se conseguem resultado nos chamados, ninguém sabe. Talvez o chamem só por amor da arte, ou por amor do nome. Porque a resposta de Mimiro não se ouve nunca. Êle dá a impressão de ser como uma presença imaterial, que existe apenas graças às invocações dos outros. E presença bem maligna, ao que parece. Dia em que está nos seus azeites leva a cabrita a pastar na praia do Cocotá onde não nasce nem herva de rebenta-cavalo. Como é que havia de nascer pasto nas pedras do cais? Amarra a desgraçada no pé de oiti da arborização da Prefeitura, ensinando-a assim a roer casca de pau, que até parece bode cearense, em tempo de sêca. Na hora de beber, Mimiro puxa a cabrita pela corda até o mar e empurra-lhe à fôrça o focinho na água salgada. E como o animal recusa, naturalmente, êle explica aos moleques companheiros que a Mimosa há de estar doente, ou então é luxo. Se a gente come de sal, porque a cabra refuga?
    Quando está desfalcado de dinheiro, ou com ódio especial do padrasto, assalta os ninhos das galinhas chocas e vai vender “ovos fresquinhos de quintal” aos veranistas da Freguesia ou da Praia da Bandeira. É comércio rendoso, apenas com o defeito de não lhe permitir mercar o produto duas vêzes na mesma rua. Só passa em cada uma uma vez. Sim, porque já tem vendido ovos que estão com quinze dias debaixo da galinha. Depois, quando “seu” Carlindo faz alarido que os lagartos estão lhe comendo os ovos da sua criação de galos de briga, é Mimiro que organiza as caçadas aos lagartos e gambás.
    Não briga de agarrado com nenhum outro garôto; sabe-se magro, esmirrado, e as feridas da cabeça são ponto muito vulnerável a qualquer pancada. Quando se sente ofendido ou de ânimo por demais belicoso, chega junto do adversário escolhido, diz na sua fala rouca o pior palavrão que sabe (e consta que os sabe raríssimos), e sai correndo para longe. Serve-se então da sua arma de arremêsso, põe um projetil no bodoque e não perde um tiro. A gravidade das intenções de Mimiro se traduz pela natureza do projetil, que vai desde caroço de milho até pedra de ponta.
    Fêz inimizade com um seu vizinho distante. A guerra começou por causa de um nome feio que êle disse à senhora dêsse homem e prolongou-se depois por amor de um frango carijó. Segundo vários testemunhos, Mimiro liquidou a pedrada a triste ave, esquartejou-a com o canivete, dando depois os pedaços a cada um dos cachorros das redondezas.
    O homem é grande, feio, malcriado. Mimiro entretanto zomba dêle. Depois do caso do frango e de vários outros casos menores de hostilidade estava Mimiro um dia na Praia do Barão, de cócoras, absorto, capando as pinças de um siri enorme, quando veio por trás o seu inimigo e lhe cortou as costas com umas cinco cipoadas de goiabeira. O pequeno deu um berro curto, largou o siri e foi se esconder no mato, ali perto. O homem ainda blasonou:
    - Não disse que um dia ainda te apanhava, malandro?
    Mas Mimiro parece que jurou vingança - e vingança tirou. Certa noite vinha o homem descendo a rua que é mal iluminada e tem dos lados uma vala de mais de metro de fundo, pois o esgôto ainda não chegou lá. Vinha descuidado, assobiando a cantiga que saía dum rádio, numa casa próxima. De repente soltou um grito, agarrou a coxa com as duas mãos e o sangue escorreu na perna da calça clara. Um casal que estava namorando junto do poste correu para acudir. Abriram-se portas com o barulho, foi saindo gente das casas e em breve se formou ajuntamento. O homem não parava de gemer:
    - Fui baleado, fui baleado! Até sinto a bala aqui dentro, ardendo como fogo!
    Chamaram a Assistência e a ambulância levou o ferido. Mas quando o doutor foi extrair a bala, só achou, bem enterrado na carne, um pedaço de vidro de ponta, um caco de garrafa afiado como um dardo.
    Também ninguém tinha visto, na hora do “tiro”, a carapuça vermelha de Mimiro emergindo da borda da vala, nem se ouviram os seus passos furtivos enquanto se esgueirava para longe, sem sair da sua trincheira, e com o bodoque na mão.

(Da Revista O Cruzeiro 23/11/1943 - O blog manteve a grafia original)

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