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Os Fariseus da Praça, Josué Araújo



     Após três meses, afastado do trabalho, por conseqüência de um acidente de carro, fui caminhar um pouco pelo centro da cidade. A clavícula estava calcificada e o corte na face cicatrizava milagrosamente sem deixar marcas. Pensei em retornar à vida boemia, mas não sentia a mesma alegria de antes do acidente.
     Eram dias de inverno com chuvas frias e persistentes. No primeiro dia de trabalho, usei o intervalo do almoço para dar um passeio na Praça da Sé. Jamais gostei do inverno, sempre fui como um escorpião do deserto. Reconheço que há invernos e invernos: O inverno amigo dos privilegiados que se deliciam do calor à beira de uma lareira, deixando o frio da porta para fora; Há também o inverno dos menos privilegiados, que não têm uma porta para entrar.
     O frio não era um argumento forte para que a Praça da Sé ficasse deserta. A torre da Catedral alertava para a possível presença do “Corcunda de Notre Dame." À esquerda, a fonte sobre o buraco do progresso, raramente deixa de ser um objeto decorativo para jorrar água nas cabeças sujas dos menores abandonados. Bem à frente da Catedral, os escribas expulsos na Antigüidade do templo sagrado, representam agora as mais estranhas comédias inspiradas nos “Cem dias de Sodoma e Gomorra” do Marquês de Sade.
     Crianças com olhar de cão faminto arrancam violentamente correntes de ouro do pescoço de senhoras frágeis. Cegos tocam instrumentos musicais para surdos invisíveis.   Masoquistas sem camisa se deitam sobre cacos de vidro cortantes, enquanto “Sargentos Garcias” pulam sobre suas barrigas, forçando suas costas peladas contra os cacos. A expressão no rosto dos sacrificados lembrava mais, uma virgem ao ser desvirginada.
     Os espectadores sádicos demonstram satisfação, atirando-lhes moedas. Nessa arena pública, se reúnem outros escribas e fariseus como políticos e fanáticos religiosos, num paradoxo de interesses comuns: salvar o povo. Os políticos prometem libertá-los da fome e da miséria; Os religiosos prometem salvar a alma.
     Ambos fazem promessas, dão a garantia de Deus e empenham até a própria alma. O interesse dos salvadores é maior que o interesse das vítimas, em serem salvas. Com um pacote de pipocas na mão, eu passei ao lado do Marco Central e parei em frente a um canteiro de flores. “Que neblina chata!” A neblina, fina e fria, brincava de não molhar as pessoas. Sentado no banco do canteiro, um maltrapilho muito velho tremia de frio e fome. Próximo a seus pés descalços, vários pombos disputavam um punhado de grãos na lama pisoteada do canteiro. Percebia-se claramente, uma ponta de inveja na expressão triste do rosto barbudo e marcado por maus tratos, do pobre molambo ambulante.
     A sua boca não conseguia abrir para um pedaço de pão velho e duro. O frio devia ter endurecido os seus maxilares como a pedra do “marco central” da cidade, representado naquele obelisco bem ali no centro da praça. O velho voltou à atenção para os pombos e eu pensava comigo: “Que bichinhos gulosos! Comem tão rápidos que até formam nós no meio do pescoço! Que pena que mendigos não comem milho cru!”
     Gotículas de neblina deslizavam sobre a oleosidade das penas dos privilegiados pombos. O mendigo devia estar com inveja dos pombos:“Criaturas de sorte! Não sentem frio e comem milho cru. Gente sente frio...gente? Mendigo não é gente. Mendigo é um ser humano. Não é pombo de Deus ou cachorro de madame. Simplesmente uma questão de penas, apenas...ou de rabo?” O mendigo sonhava acordado, os pombos engoliam os milhos e eu as pipocas.
     Há certos momentos da vida, que acontecem cenas como esta, em que eu não sei se dou risada, se choro ou se me sinto ridículo. O bastardo social passou o braço peludo pelo nariz e ergueu a cabeça com o olhar voltado para o céu. Gesto idêntico ao de um orangotango de zoológico, fazendo caretas para os moleques. Subitamente, levou as mãos, ao lado esquerdo do peito. Os olhos se arregalaram com expressão de dor fulminante.
     Uma pipoca se enroscou na minha garganta, ao mesmo tempo em que a mão do mendigo, trêmula e lenta vinha na minha direção. A pipoca desceu garganta abaixo. Sem ação e num gesto inútil, ofereci o que sobrou das pipocas ao gorila cansado, mas o corpo do infeliz caiu inerte de cima do banco. O nariz do velho enterrou-se na lama, expulsando os pombos.
      Apressei-me em socorrê-lo. Virei o seu corpo ao contrário. Dois olhos pretos e sem brilho, se destacavam no meio de um emaranhado de fios de barba ensopados de lama. Consternado, comecei a me afastar de marcha-ré, soltando as pipocas. O mais incrível era que ninguém se dava conta do que estava acontecendo. O meu traseiro deu de cara com o marco central da maior metrópole do Brasil.
     Ao redor da torre, os pombos voavam em círculos. Os sinos tocavam, quem sabe pelas mãos do espírito do corcunda de Notre Dame. Senti o traseiro molhado e só então, tomei consciência de que estava sentado no coração de São Paulo. O coração da cidade fria estava molhado de neblina... Ou quem sabe de lágrimas? Lágrimas de Pedra?

Comentários

  1. Josué, gostei imensamente da sua descrição do que acontece na Praça da Sé, que não é nem um pouco diferente do que acontece em muitos lugares do Rio de Janeiro. Há um ambiente de "fora do mundo atual" nestes locais. Os nossos parques públicos, pela variedade de habitantes com inventivas maneiras de ganhar dinheiro e às vezes também de explorar um público mal informado,-- desde os equilibristas de bolas de tênis, aos vendedores de remédios mirabolantes que curam tudo -- têm um ar do que imagino terem sido as cidades medievais e porque não os vilarejos bíblicos? Há um certo "parar do relógio" nestes locais, que talvez só se possa entender pelo estudo de física quântica! Parabéns! Ladyce

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  2. Ladyce!
    Voce devia ter participado do corpo de jurados, no concurso realizado pelo livro errante. Gostei muito do seu comentário.
    Obrigado
    Josué

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