Pular para o conteúdo principal

Os Ramos Ocultos de Graciliano, Antonio Falcão




Antes de conhecer Dona Heloísa, viúva de Graciliano Ramos, eu tinha algum entendimento sobre o autor de Vidas Secas. O encontro se deu em novembro de 77, na Chácara Santo Antonio, bairro de Santo Amaro, São Paulo. Ali eu já sabia que ninguém pode escrever a vida de um homem senão ele mesmo, como confessou Rousseau. Graciliano Ramos, o mais perfeito e significativo dos romancistas brasileiros pós-modernistas, não fugiu dessa assertiva.
Efetivamente, Mestre (ou Major) Graça – assim o chamavam seus contemporâneos – escreveu pedaços de si, da vida que viveu, da ambiência ao seu redor. Seus personagens, encontradiços nos campos e ruas deste país, ou refletidos nos caminhos em desalinho de sua imaginação, têm faces alencarianas e machadianas. São substantivos e não adjetivos. São, sobretudo, humanizados, mesmo quando situados em condições precárias de uma cidadezinha, como João Valério, em Caetés, ou moralmente indignos, como Paulo Honório, em São Bernardo, ou, até, psicologicamente difíceis, tal qual Luís da Silva, em Angústia, sua obra-prima. Mas seu instinto de humanização hipertrofiou-se em Baleia, a cadela de Vidas Secas, seu romance (ou novela, na classificação de Álvaro Lins) mais popular e mais traduzido.
Graciliano, o escritor, um estilista, um clássico; o homem, um pessimista em relação aos políticos e à vida literária. Autor econômico, de sentenças secas e duras, o Mestre, nada poético, escreveu friamente coisas ardentes, como recomendou Baudelaire. Clássico pela universalidade que individualizou na sua obra, por isso há de perdurar na nossa história literária.
Seu pessimismo transmitido à literatura era justificável. Decorria das circunstâncias em que viveu e da realidade social do Brasil. Graciliano testemunhou uma verdade gravada desde a infância. Valendo-me da frase de Mário da Silva Brito, diria que foi um otimista de luto. Enlutado pela miséria que veste a grande massa brasileira; luto que não transferiu ao povo, merecedor de sua extraordinária confiança.
Mas Dona Heloísa, sessentona, morena, de traços belos e culta, me ensinou muito mais. Afável, falou-me do marido com empolgação e frescor, coisas de adolescente enamorada. Disse que o Mestre – pra ela, Graci - era despreendido em relação a tudo e consigo próprio. Certa vez, notou que há dias ele andava capengando de uma perna e não sabia explicar o porquê. Quando Graciliano descansava, ela pôs a mão dentro do sapato dele e descobriu uma ponta de prego que fazia escavações no dedão do Major. E riu meiga, como se Graciliano estivesse presente e ali fosse a pensão carioca do Catete, onde moravam.
Depois, eu quis saber como se comportava Mestre Graça no plano doméstico, seu trato pessoal com ela, os filhos. Extremamente doce, carinhoso e polido, respondeu. Às vezes, romântico, como numa manhã em que foi à casa de um amigo e de lá telefonou pra ela, insistindo que fosse ao seu encontro, olhar um pé de jasmim recendendo no quintal. Sentimentos desse tipo ele não botou nos livros.
Perguntei por Graciliano político. Como ele conseguiu acomodar suas veleidades anarquistas à rigidez do Partido Comunista, ao qual aderiu em 45. Respeitosa com o Partidão, ela me contou que o marido, disciplinado militante, nunca fez de sua literatura um panfleto, tornando seu texto um palanque. Homem do seu tempo e escritor engajado, Graciliano jamais rendeu subserviência ao stalinismo, então reinante, ou ao sovietismo embasbacado. Um marxista instruído. Entendeu que tudo que fala do homem é, por si, político.
Procurei saber mais. Ponderei que Graciliano, primogênito de uma família de 16 filhos, educado com rigor pelos pais tabaréus, conheceu o internato de um colégio, foi balconista, dono de loja de tecidos, prefeito. Considerei ainda que dirigiu a Imprensa Oficial, uma escola que fundou numa sacristia e a instrução pública de Alagoas. Tudo isso, além de enfrentar a peste bubônica dizimando seus parentes, enviuvar ainda moço, criar quatro filhos menores do primeiro casamento e ter sido preso político em conseqüência da quartelada de 1935, da qual não participou. Como conseguiu tempo e condições para escrever tanto e tão bem? Ela foi clara e precisa, como o marido: - Exatamente por tudo isso.
Sobre os críticos literários, foi primorosa. Ficaram ocultos para eles alguns ramos viçosos do Mestre Graça. Tomou Vidas Secas como exemplo. Nos contos do livro – romance desmontável para Rubem Braga -, Graciliano construiu o vaqueiro Fabiano, ruivo, de olhos azuis e obtuso. Um bicho autoproclamado. Sinhá Vitória, sua mulher, mulata e inteligente. Sabia contar. Quis o Mestre afrontar o racismo e o machismo da nossa cultura. Nenhum ensaísta literário ou político, nenhum militante étnico ou feminista, descobriu esses propósitos do Autor. Tampouco, ninguém indicou as razões de Sinhá Vitória ter como objetivo uma cama de lastro de couro, como a de seu Tomás da bolandeira. O grande Graça insinuou o adultério de sua heroína. Ninguém foi lá.
Ocultas, aos olhos dos críticos, as circunstâncias em que Graciliano elaborou Vidas Secas. Em 1937, o Autor morava com a mulher e os dois filhos numa pensão. Os filhos inspiraram os personagens meninos mais novo e mais velho. Os quatro eram a família.
Com a lição de Dona Heloísa, tomo para Graciliano o que Anatole France disse de Zola – um momento de consciência humana.
Obrigado, Dona Heloísa. Tenho pra mim que a senhora enriqueceu este país endividado com tudo, inclusive com seu marido.

Texto extraído de "Romeiros do Absurdo" - páginas 69/72, Ed. Comunicarte, Recife/1991.
* Antônio Falcão é escritor, também, dos seguintes livros: O Tango da Meretrizes - Ed. Bagaço, Recife/1997 ; Mil, Novecentos e Nós - Ed. Comunicarte, Recife/1995: Um sonho em Carne e Osso, os fora de série do futebol brasileiro -Ed. Bagaço, Recife/2002; e Os Artistas do Futebol Brasileiro- Ed. Nossa Livraria, Recife/2006.

Comentários

  1. Não sei se concordo com o autor, sobre o Brasil ter débito com Graciliano Ramos.Graci é respeitado e suas obras estão aí, sempre re-editadas.
    Recentemente, relendo os relatórios que enviou quando foi prefeito de Palmeira dos Índios- AL imaginei que o congresso podia fezê-los material didático distibuindo como leitura obrigatória a todos os políticos sem exceção, depois de editados lá mesmo na editora do congresso.
    voltando ao assunto débito, comque finaliza o texto o Sr.Antonio Falcão, acho que o temos com Ricardo Ramos, filho dele.

    ResponderExcluir
  2. Ai, ai, ai... Que belo ensaio!
    Emocionou-me às lágrimas. Chorei ao saber que tão gabaritado escritor teve um prego no sapato, incomodando-lhe e o deixando, ainda que provisoriamente, manco!
    Penso que a dívida do país para com ele seja essa: vivo - sofreu as agruras da pobreza, morando em pobres pensões, foi preso injustamente, conforme relata a viúva... O país sempre é devedor quando mantém encarcerado alguém que é inocente.

    ResponderExcluir
  3. Regina, não sei como "me passou" este arquivo sem que eu o tivesse lido. Tomei a liberdade de copiar o trecho sobre Vidas Secas e, citando a fonte, é claro, vou postar num lugar onde falamos de Vidas Secas e realmente não chegamos a abordar estes pontos. Vivendo e aprendendo... E viva o mestre!

    ResponderExcluir
  4. Rosa e Lucila:
    Este blog, sempre tem postagens que não deviam passar despercebidas.Venha mais vezes.
    O tópico: "Muito prazer, Graciliano" vai se estender por todo o ano de 2009 - à medida em que os livros forem terminando seus trajetos as discussões vão começando. O primeiro deles,São Bernardo, está em São Paulo com o último leitor.Na medida do possível vão entrar também os ramos de Graciliano.Como vêem gosto dele como gosto de chocolate.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.